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Com "Vale Tudo", Gilberto Braga teve papel na redemocratização do Brasil

Novela de 1988 refletiu sobre identidade, moral, crise e jogou luz em aspectos subversivos para a ditadura militar

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Emannuel Bento

Publicado em 27/10/2021 às 15:00 | Atualizado em 27/10/2021 às 17:26
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Gilberto Braga, que faleceu nesta terça-feira (26), foi um dos autores responsáveis por fazer da dramaturgia um zeitgeist (espírito do tempo) dos períodos políticos do Brasil. Com a abertura democrática de 1985, após 21 anos de regime militar, a indústria cultural iniciou um processo de redescobrimento do país. Com o abrandamento da censura, novos temas puderam ser abordados em perspectiva crítica e existia um certo sentimento de liberdade.

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Foi nesse contexto que nasceu "Vale Tudo", obra de Braga com Aguinaldo Silva e Leonor Bassère como coautores convidados. A novela convidou o país a refletir sobre identidade, crise, moral e jogou luz numa realidade muitas vezes escondida pela ditadura: a corrupção estava presente em todos os núcleos da nossa sociedade.

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No âmbito da democracia, "Vale Tudo" tinha cenas que estimulavam o voto, a exigência da nota fiscal nos mercados e pedia para que as pessoas não jogassem lixo na rua. A crise inflacionária e o medo da violência urbana estavam em muitos diálogos, sobretudo na primeira fase. O folhetim chegou a ter um casal lésbico Cecilia (Lala Deheinzelin) e Laís (Christina Prochaska) - a primeira morreu em uma acidente de carro, o que trouxe uma discussão obscura para a época: quem deveria ficar com a herança?

A obra quebrou paradigmas até para as novelas atuais, pois não era maniqueísta, com personagens fugiram do dualismo - "o bem versus o mal". A exceção, claro, era a protagonista Raquel (Regina Duarte). Sua filha inescrupulosa, Maria de Fátima (Glória Pires), até podia ser uma vilã, mas a forma como a trama acompanhou a sua trajetória a colocou como uma espécie de protagonista alternativa ao lado da mãe. Próximo do final da trama, o público pode até sentir certa pena de Fátima.

Mas, como toda boa novela, também existiam os vilões totalmente ruins. Odete Roitmann (Beatriz Segall) encarnou uma figura caricata da elite que não se sente pertencente ao próprio país e odeia os pobres. Em cena, ela criticou a nova Constituição e a CLT. Marco Aurélio (Reginaldo Faria), além disso tudo, expôs a corrupção existente no colarinho branco. Isso tudo era feito com muita maestria, pois Gilberto Braga sabia representar a elite carioca como poucos nas telinhas.

O seu final arrebatador, em que os vilões não são punidos, certamente ajudou a criar um certo clima num país que passava a escolher seus representantes pelo voto. Algo precisava ser feito. Em 1989, na primeira eleição para presidente após a exibição da novela, venceu aquele que prometeu erradicar a corrupção. Era o "caçador de marajás" Fernando Collor, que deixou o cargo sob escândalos e ameaça de impeachment antes do final do mandato.

Estamos na porta de 2022 e o Brasil ainda é guiado pela narrativa da erradicação da corrupção, procurando heróis e salvadores da pátria. A mentalidade do "ser honesto é ser burro" ainda é realidade, sobretudo num contexto em que a crise volta a assombrar as famílias. Por isso "Vale Tudo" continua tão atual.

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