Acima das controvérsias, "Marighella" é uma trama política eletrizante
Após inúmeros adiamentos por problemas com a Ancine e pela pandemia, filme que marca estreia de Wagner Moura na direção chega aos cinemas brasileiros
Os batuques marcantes de "Monólogo ao Pé do Ouvido/Banditismo por uma Questão de Classe", clássico de Chico Science & Nação Zumbi, ainda nos primeiros minutos de "Marighella", que estreia nesta quinta-feira (4), já entregam um pouco sobre o conteúdo que será exibido a seguir. Esse é um filme em que é preciso deixar de lado o maniqueísmo e a ideia errônea de que a ficção é documentário. Sobretudo, é preciso se permitir a entender as complexidades de figuras controversas - afinal, Chico Science clama “Lampião, sua imagem e semelhança” no monólogo tocado.
Estreia de Wagner Moura como diretor, "Marighella" deixa seu registro na história do audiovisual brasileiro por ser o grande lançamento nacional da retomada das salas de cinema, mas principalmente por ser um filme sobre um personagem controverso, de um período político conturbado, num contexto bastante polarizado. Com estreias adiadas por problemas com a Ancine (vários artistas que integram a obra já falaram em censura) e mais um adiamento pela pandemia, o longa já levantou e ainda levantará muitos debates.
Baseado no livro "Marighella: O Guerrilheiro que Incendiou o Mundo", do jornalista Mário Magalhães, a produção acompanha os últimos quatro anos de vida do guerrilheiro, indo de maio de 1964, quando é violentamente preso no começo do regime, até a sua morte, em 1969. Conta com um elenco estelar: além de Seu Jorge na pele do protagonista, Adriana Esteves vive a esposa Clara, Bruno Gagliasso dá vida ao delegado Lúcio (Sérgio Paranhos Fleury), Herson Capri, entre outros.
Wagner Moura, que no passado viveu o Capitão Nascimento, antecipação da atual exaltação da figura policial em Tropa de Elite (2007), optou por construir uma trama política eletrizante, repleta de cenas de ação, trocas de tiros, perseguições, atentatos e, para não deixar esquecer dos horrores do período, tortura.
O filme começa com um assalto a um trem de carga, logo parte para tiros em sala de cinema, assalto a banco e assim segue. Existe uma dosagem na medida certa entre diálogos e ação, mantendo o espectador sempre atônito, como num bom filme de ação. Existe também um certo didatismo nos diálogos, como forma de fazer o público entender o contexto vivido sem precisar ser tão conhecedor da história. Talvez aí more o principal problema do longa: o excesso de frases de efeito.
O longa-metragem, é claro, não é imparcial - isso seria impossível. Em primeiro lugar, ele já contrapõe o negacionismo histórico ao afirmar que houve um golpe militar no Brasil em 1964, com apoio de parte da população, empresários e imprensa. Em segundo, como o previsto, traz uma visão favorável ao personagem vivido por Seu Jorge, embora, diferente do que muitos pensem, não chega a canonizá-lo.
Em determinado momento, o próprio personagem admite que praticava terrorismo e algumas decisões da Ação Libertadora Nacional (ALN), como balear um homem na frente do próprio filho de 6 anos, mostram que a violência era generalizada. Não é para menos: era um grupo radical que pregava luta armada contra um regime autoritário que não media esforços para prender, perseguir, torturar e matar. Em outros momentos, personagens se mostram desacreditados da revolução, já que o povo brasileiro não poderia não aderir ao movimento.
Mas é claro que também vemos o Marighella pai, o Marighella marido, o Marighella amigo, além do guerrilheiro. Nesse último aspecto, o filme mostra que ele acreditava ser imbatível e acreditava em muitas utopias. O filme não fala tão abertamente sobre o comunismo, embora o personagem admita que deseja uma revolução "semelhante à de Cuba ou Vietnam."
Ao ser questionado sobre ser leninista, trotskista e maoista, ele diz ser "brasileiro". Talvez aí more a principal mensagem política do filme para os dias atuais: o patriotismo não é uma bandeira exclusiva de determinado espectro político. Acima de todas as controvérsias, esse é um filme eletrizante sobre a história do Brasil. Mais do que as cenas de violência e tortura, o que choca é que, em 2021, existem autoridades que acreditam que ele nunca deveria ter chegado ao cartaz.