'Quando chegar a hora, faremos um carnaval para vingar todos esses anos', diz Chinaina
Cantor pernambucano lançou EP "Carnaval da Vingança", que tenta adiantar o furor da próxima festa no cessar da pandemia, com muito frevo, hardcore e samba-reggae
No segundo ano sem carnaval, o cantor olindense China, que agora assina como Chinaina, volta a homenagear o frevo no EP "Carnaval da Vingança", um trabalho que tenta adiantar o furor da próxima festa, após o cessar da pandemia. As experimentações do cantor com o ritmo datam da banda Sheik Tosado, diretamente influenciada pelo manguebeat.
Assinando a produção do projeto, o artista também explora o samba-reggae em "Carnaval Infinito" e traz uma versão potente de "Deixe-se Acreditar" (2004), da Mombojó, com Felipe S. "Hardcore Brasileiro" (1999) ganhou releitura com orquestra regida pelo maestro Nilsinho Amarante, com passos acelerados para 180 BPM.
O EP ainda traz participação especial de Cannibal, vocalista da lendária banda Devotos, que tocará na abertura do Rock In Rio 2022, na inédita "Virando Papangú". A arte da capa e o projeto gráfico são de autoria de Neilton Carvalho, integrante da Devotos.
Entrevista - China, cantor
Como nasceu a ideia para o "Carnaval da Vingaça"? Foi um presente para o seu público nesse segundo ano sem a festa?
O EP foi todo feito durante a pandemia, uma verdadeira loucura porque foi o primeiro trabalho que fiz totalmente a distância. Ele só saiu graças à tecnologia, mas foi gravado um pedaço em São Paulo, outro pedaço no Recife e outro em Salvador. Hoje em dia temos placas de áudio que possibilitam, isso ajudou muito na produção. Acho que, no final das contas, a música tem uma linguagem universal, não interessa se está presencialmente ou via Zoom. Esse foi o grande mote para o disco. Vem de uma ideia de saudade do Carnaval, mas sobretudo sobre o próximo. Quando chegar a hora, faremos um Carnaval para vingar todos esses anos e tudo o que perdemos nesse tempo.
A recepção do público tem refletido essa saudade?
Nossa, a coisa que mais tenho lido é: “porr*, para de me dar gatilho”. Ou “uma sacanagem esse EP” (risos). A reflexão tem sido muito boa porque você quer ouvir as músicas na rua, curtindo. A recepção tem sido muito boa, desde a capa até a sonoridade. As memórias vêm, sensações são atingidas com sucesso e era essa a ideia mesmo. Já fiz esse projeto pensando na possibilidade de não termos show, por isso ele tem esse calor intenso. Investi todo o valor que faria num show num álbum. Quero que as pessoas sintam-se abraçadas de alguma forma pelo Carnaval. Em seu tempo, quando tudo estiver OK, quem sabe não fazer um show com uma orquestra?
A frase "o frevo é o hardcore brasileiro" ainda soa muito impactante. Como pensou nela ainda nos anos 1990?
Falando um pouco do hardcore brasileiro, musicalmente, eu sempre achei que o bumbo do hardcore e do frevo tinham a ver. O frevo não convida, ele arrasta. O hardcore também. Eu sou de Olinda e via desde pequeno aquele Carnaval passando e, em casa, ouvia Ratos de Porão, Sepultura... Na minha cabeça, aquilo era parecido com o que rolava numa roda de coco. Em 1999, no lançamento do Sheik Tosado, eu gostava de dizer que a população do Brasil seria impossível se quisesse fazer uma guerra civil. Imagina milhões de pessoas parando tudo e 'pera aí, que já já voltamos para a folia'. Vejo essa força e esse poder do frevo e do hardcore. São ritmos fortes, violentos nesse sentido de ser uma descarga de energia muito forte que ocorre.
Acha que pautar o frevo, fazendo-o ser ouvido por novas gerações, é uma tarefa constante?
Acho que sou mais um nessa tarefa, pois existem vários artistas trazendo essa renovação: Silvério Pereira, Maestro Spok, Siba… O objetivo é mostrar que esse é um ritmo grandioso. Talvez seja a maior riqueza cultural que Pernambuco tenha. Então acho superimportante ressaltar que ele não deve ser restrito ao Carnaval e pode se misturar a vários outros ritmos. Acho engraçado que, quando a Banda Eddie faz show em São Paulo, eles fazem um Carnaval. Não interessa o dia do show, mas sim perceber que
é um estilo musical onde não existe fronteira. É um trabalho de olhar para a nossa tradição e pros dias atuais. Fico muito feliz quando escuto os maestros tocando Eddie, Chico Science… Isso é de grande importância. Uma vez entrevistei uma banda de pífanos que participou do Grande Encontro, com Alceu, Elba e Geraldo, no Rock in Rio. Eles falaram que aquilo era de uma importância tão grande para as novas gerações, pois os jovens não veem aquilo como algo do passado.
Você costuma falar nas suas redes sobre a relação entre os artistas e plataformas de streaming. Recentemente, essa discussão ganhou um novo tópico com o conflito de músicos em relação à existência podcasts negacionistas. Como tem acompanhado essa questão?
Acho que é um reflexo dos nossos tempos e precisamos acompanhar. Hoje, é o novo formato e não tem muita volta nesse sentido. Como artistas, precisamos nos unir para brigar para um pagamento mais justo pela nossa obra. Nós somos a matéria-prima que eles vendem. Não imagino as plataformas funcionando sem as músicas. Ao mesmo tempo, é necessário se unir para bater de frente com esse tipo de coisa (podcast negacionista). É um absurdo que o Neil Young tenha que fazer alguma coisa e eles prefiram o outro lado. Quando você coloca o dinheiro na frente, tudo fica muito esquisito. Já existem vários grupos que brigam pelo pagamento do direito autoral. É óbvio que para um artista do meu tamanho, fica bem mais difícil. Mas fico feliz em ver vários artistas brasileiros colocando as plataformas contra a parede. Acho que é algo que vai aumentar, é ridículo o que você recebe pela sua obra. Não existe prestação de contas em relação a quanto fica na mão da plataforma se toca uma propaganda, como essas coisas são divididas. No começo, todos os artistas achavam que seria o máximo. A indústria sempre consegue dar aquela volta.
Para além da pandemia, que minou muito o setor cultural, como você tem visto a valorização da área nos últimos anos?
Nunca existiu um plano para a cultura na pandemia. Todas as outras áreas foram voltando: esportes, estádios, mas nunca houve um plano de cultura. Também porque temos um governo federal totalmente inepto, mas isso também é de responsabilidade dos governos estaduais. Se você parar para pensar, a cultura poderia estar mais atrelada ao turismo, por exemplo. Quando se fala em Lia de Itamaracá, você está atraindo gente para conhecê-la, saber o que existe à sua volta e absorver a cultura da ciranda. Em 2019, li uma matéria de um levantamento da Firjan (Federação das Indústrias do Estado do Rio de Janeiro) que dizia que o segmento da cultura movimenta, por ano, o mesmo que o setor imobiliário. Isso é muita coisa.
Acha que Pernambuco tem conseguido mostrar sua cultura ao Brasil nesse sentido?
Um estado como Pernambuco, que é riquíssimo em cultura, é um lugar em que essa abordagem deveria estar sendo investida. Não adianta apenas criar uma bela campanha de turismo, o cara vestido de lanceiro na porta do aeroporto. Percebo que as coisas acontecem muito mais [de forma] independente do que pelo próprio poder público, o que é uma pena. Aqui no Brasil descem a lenha na própria cultura, acho isso muito estranho. Uma estratégia inteligentíssima é observar o que o Pará fez entre 2007 e 2010, era um investimento maciço que promoveu uma invasão paraense em vários lugares. No centenário do frevo, lembro que cantei pelo governo em vários lugares: Rio, São Paulo, Brasília. Foi uma iniciativa incrível.
O ano de 2022 será bastante decisivo para o Brasil. Como você acha que o setor da cultura pode contribuir para mudanças nos próximos anos?
Esse é mais um daqueles anos em que não sabemos o que vai acontecer. A gente precisa estar atento e cobrando às instituições. Vivemos um momento em que um cara na TV faz uma saudação nazistas. Não tenho como somente falar do futuro da cultura. Nós temos de pensar no Brasil como um todo. Para qual lugar o país está indo? Eu nunca imaginei palavras como censura, ditadura, nazismo, voltarem com tudo no Brasil. Falando pela classe artística, acho que temos de estar muito preparados para o que vamos propor quando ele (Bolsonaro) cair fora, porque ele vai sair, isso é uma realidade. Esperamos que os gestores que sejam eleitos estejam preocupados com uma cultura que foi deixada de lado. O cara fazer uma saudação nazista na TV é um reflexo de toda essa degradação do Brasil nos últimos anos. É muito triste ver o que aconteceu com o Brasil e, olhando para a cultura, resta botar a cabeça no travesseiro, chorar de raiva e levantar propondo uma guerrilha. Meu outro disco, "Manual de Sobrevivência para Dias Mortos", já era uma guerrilha. A nossa geração aprendeu muito sobre a ditadura ouvindo a música brasileira. Agora é um momento dos artistas explorarem um pouco de tudo o que ocorreu no país para as gerações que vão vir.