MÚSICA

'Um artista nordestino tem que se posicionar sempre', diz Otto, que lança novo disco

"Canicule Sauvage" foi produzido por Apollo 9, mesmo responsável por "Samba Pra Burro" (1998): "Estamos passando por um momento muito difícil, em que a coragem vale mais do que o medo"

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Emannuel Bento

Publicado em 29/04/2022 às 16:51 | Atualizado em 02/05/2022 às 14:48
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Há duas décadas, Otto levou composições criadas com acompanhamento de um pandeiro ao produtor Apollo 9, que tinha expertise em experimentações eletrônicas. O resultado foi o clássico “Samba pra Burro” (1998), sua estreia solo.

No último ano, o pernambucano de 53 anos voltou ao estúdio de Apollo com faixas criadas num iPhone. Otto é um usuário assíduo do aplicativo Garage Band, com software que emula instrumentos reais.

Esse novo ímpeto criativo resultou no "Canicule Sauvage", lançado nesta sexta-feira (29). É o seu sétimo disco de inéditas e o primeiro em que também assina a produção. Apollo dispôs o seu arsenal de instrumentos e teclados, possibilitando uma série de experimentações. Otto soa mais eletrônico, ainda dialogando com rock, reggae e samba.

RUI MENDES/DIVULGAÇÃO
MÚSICA Otto lança disco "Canicule Sauvage" - RUI MENDES/DIVULGAÇÃO
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MÚSICA Otto lança disco "Canicule Sauvage" - RUI MENDES/DIVULGAÇÃO

O disco é recheado de participações, sobretudo de cantoras: Ana Canãs, Nina Miranda, Lavínia Aves e Tulipa Ruiz, além do parceiro de longa data Lirinha, do Cordel do Fogo Encantado. Pupillo, que produziu os últimos discos do amigo, está presente em baterias.

A nova permissividade do projeto dialoga com o próprio momento de Otto, mais um artista que saiu da pandemia com novas ideias. Ele agora também é pintor, vendendo suas obras pelo Instagram. Seus textos na rede social ainda renderam uma publicação: "Meu Livro Vermelho".

O cantor fala sobre o "Canicule Sauvage" e atual fase em entrevista ao JC:

Esse é um disco que mostra um maior relação sua com softwares que emulam instrumentos. Como essa sua relação com a tecnologia foi crescendo? Acha que isso te expandiu como artista?
A minha primeira gravação com o Garage Band fiz com o Pupillo, foi ele quem me mostrou. Usamos uma bateria em “Late”, com Céu. Era um disco acústico. Eu venho trabalhando com ele desde sempre, como um guia para mim. São como células. De um tempo para cá comecei a fazer a música toda, comecei a compor mesmo. Antes da pandemia, eu já pensava que precisava me modificar de alguma coisa, na música, no trabalho. Preciso me desafiar. Ele foi esse desafio. Eu não toco instrumentos, como uma guitarra física ou um teclado físico. Agora eu toco (risos). Comecei as minhas harmonias, e acho que faz parte da minha evolução. A minha música é muito mais natural do que já era antes. É tudo muito intuitivo, e me dei muito bem.

Essa liberdade proporcionada pelo software lhe fez assinar pela primeira vez como produtor? Você também voltou ao estúdio do Apollo 9, que produziu o ‘Samba pra Burro’, um álbum muito importante na sua carreira.
Ninguém faz nada sozinho. Eu preciso ter no estúdio um cara que faça essa panorama para mim. Era muito o Garage e eu ali, guardados. Abri tudo para o Apollo 9. Ele deu toda a diferença. Teve a primeira fase, eu e as células, algumas músicas, e a finalização dele, que é genial. Esse encontro ocorreu 22 anos depois do ‘Samba Pra Burro’, para fazer um disco eletrônico de novo, foi um reencontro muito bom.

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MÚSICA Otto lança disco "Canicule Sauvage" - RUI MENDES/DIVULGAÇÃO

O eletrônico estava em "Samba pra Burro" e agora volta em "Canicule Savage". Qual a potencialidade do eletrônico para você?
Você pode fazer som acústico, de banda, mas sempre vai usar elementos eletrônicos. Para mim, sempre foi primordial. Quando saí da Nação e da Mundo Livre, só tinha o Apollo que produzia eletrônica. Hoje em dia é difícil ver alguma coisa que não tenha. Sempre flertei, sempre convivi. Acho que as coisas funcionam por aí, é o Deus digital. No ‘Samba pra Burro’ era eu e meu pandeiro, agora sou eu e meu iPhone, com o Garage Band (risos). Imagine a música do futuro, acho que vai passar um bocado por esses aplicativos. Quantos adolescentes não estão fazendo música com a Garage Band? É um aplicativo de adolescente, até meio ingênuo, mas tem um sonho maravilhoso. As pessoas estão compondo como eu compus: deitadonas na cama, antes de dormir.

Exceto pelo Lirinha, todas as parcerias de vocais do álbum são de mulheres. Foi uma coincidência, ou você quis dar foco a esses duetos femininos?
Nos meus discos sempre tiveram participações de mulheres, pois sou fã da voz feminina na música brasileira. Lirinha já é um parceiro de todos os discos, é um dos maiores poetas do Brasil. As meninas, sou fã delas. Ana Canãs, Nina Miranda, Lavínia Aves, Tulipa Ruiz… Eu queria fazer um disco mais melódico, e elas estão nessa divisão de notas em relação ao meu tom. Todas elas com suas pegadas, com suas marcas e personalidades. E eu não peço para ninguém cantar de tal forma, todas elas são improvisações. Elas emprestaram talento. Também teve o Juliano Holanda, pra mim um dos maiores músicos, que colaborou com violão. Tem o Pupillo na batera. A representação pernambucana é muito forte.

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MÚSICA Otto lança disco "Canicule Sauvage" - RUI MENDES/DIVULGAÇÃO

Recentemente você lançou o "Meu Livro Vermelho", livro que surgiu muito por conta das suas reflexões em publicações nas redes sociais. Acredita que tornou o seu Instagram, de fato, numa ferramenta que agrega com sua arte, para além de marketing ou publicidade?
Eu posso dizer que desde o golpe contra Dilma (Roussef), a minha ferramenta, o meu trabalho, a minha mídia, é o Instagram. Eu me apeguei a ele. Escrevi um livro nele, meus quadros de pintura também vendo por lá. Até fiz meu disco meio voltado ao “Deus digital”. É uma ferramenta de conteúdo, não é vender ou enganar. Eu dou a minha alma a li, minha arte. Eu tento alimentar meus seguidores com conteúdos artísticos, reflexões, resistência, denúncias. Tenho um corpo a corpo com eles. Eles desabafam comigo, a minha troca é muito genuína. Eu vejo pessoas com 3 milhões de seguidores e nem imagino como deve ser. Não tenho patrocínio. Só posso oferecer minha arte, com muito respeito.

Ainda sobre o livro, como você sentiu a recepção das pessoas? Teve até uma foto do Lula lendo…
O Lula deu uma força. Foi a minha primeira vez lançando um livro, ele saiu durante a pandemia. Eu preciso trabalhar mais. Eu não fiz evento de lançamento dele. Ainda vou trabalhar mais ele, rodar o Brasil com ele. As pessoas que leram, deram muitos elogios. É quase um diário. Tem de 2014, do golpe e até hoje. Foram quatro anos para escrever. Ele conta uma história de um país, de um artista, de um sonho, de dores, amarguras, felicidades. Eu tô gostando, tô adorando, eu precisava colocar essas coisas para fora. Tenho dito que escrever, pintar e músicas são os meus pilares, as minhas sinas. Hoje eu pinto e minhas obras já foram para todo o mundo. Eu sai do interior, saí do Recife, e hoje tenho livro, quadros, discos e defendo a minha terra. Ser representante, ser pernambucano, ter minhas raízes na minha arte. Isso é o que me deixa mais feliz: ser esse pernambucano no mundo.

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MÚSICA Otto lança disco "Canicule Sauvage" - RUI MENDES/DIVULGAÇÃO

Você não acha que ser muito aberto nas redes, sobretudo em relação a posicionamentos políticos, pode acabar sendo desgastante? Você ainda recebe ataques virtuais por seus posicionamentos?
Isso é normal. A maioria é robô, quando não é mal educado. Ai você bloqueia. A diferença do que eu penso ideologicamente é que jamais vou entrar na rede de outro para criticar o que a pessoa tá dizendo. Já me vacinei disso, mas sofri ataques pesados. Aprendi que nunca devemos ter medo de lutar pela democracia, pela civilidade. A gente tem de enfrentar, não podemos nos acovardar. Tem uma galera muito pesada do lado de lá, mas nunca vou deixar, porque é o meu país. A democracia é uma coisa séria. Estamos passando por um momento muito difícil, em que a coragem vale mais do que o medo.

O que você acha sobre artistas que não se posicionam? Existe um certo patrulhamento acerca de alguns deles.
Primeiro, acho que as pessoas devem fazer o que querem. Existem vários artistas, temos aquele que não fala, que não comenta, o que não se posiciona. Mas eu vou dizer uma coisa: sou do Nordeste, eu vi muito da luta desse povo por respeito, por decência. A gente lutou muito. Um artista nordestino tem que se posicionar sempre. A gente nasce do povo, a gente viu muita coisa, temos que ser solidários. Quando você vê uma roda de artistas que se posicionam, a maioria é nordestino. O nordestino sabe a dor, sabe o que é bom ou mau. Sabemos o que é democracia, justiça social e temos de estar do lado do povo mais sofrido.

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