A primeira memória de si fazendo arte leva à sua infância em Ipojuca, onde nasceu, em 1932. No balcão do armazém do pai, Amaro Silva, desenhou fregueses e cavalos no papel em que eram embrulhados tecidos. A partir da década de 1950, faria do fazer artístico seu trabalho. Até hoje o faz. Essa longeva trajetória de vida, arte e labor de José Cláudio será comemorada, a partir desta quinta-feira (11), às 19h, com exposição na Galeria Marco Zero, em Boa Viagem, Zona Sul do Recife.
José Cláudio está às vésperas de completar 90 anos — precisamente, no próximo dia 27 — e continua pintando todos os dias, no seu ateliê em Olinda, onde vive há quarenta. "Eu sigo o lema de um pintor grego de 300 anos a.C, Apeles — ele dizia 'nenhum dia sem um traço'", contou-me por telefone.
O José Cláudio operário da arte — que se empregou pintando de segunda a sábado, oito horas por dia, e só às vezes aos domingos, como se fizesse hora extra — é o que está ressaltado na exposição "Primeiro a Fome, Depois a Lua". A curadora da mostra, Clarissa Diniz, ao invés de celebrá-lo com as paisagens, os coqueiros e pássaros, que há muito já celebramos, escolheu brindar com outro recorte da obra de Zé, como ela e muitos amigos o chamam:
"A minha opção foi tomar a ideia de trabalho como motriz, porque acredito que ela dá mais conta de um percurso estético, social, político e ético da obra dele."
Clarissa Diniz explica que, na produção de José Cláudio, o tema do trabalho é, inclusive, anterior ao surgimento das paisagens. "Ele é um artista atento à questão do trabalhador, da pobreza, da desigualdade, das várias atividades e dos diversos saberes, ao mesmo tempo em que é um artista que se entende como trabalhador."
Quando trocou o curso na Faculdade de Direito do Recife pela pintura, em 1952, José Cláudio teve aulas com Abelardo da Hora, com quem fundou o Ateliê Coletivo. O grupo, nascido da Sociedade de Arte Moderna do Recife, tinha formação socialista, inspirado pelo realismo socialista. "Olhava iminentemente para a dimensão política e social", comenta a curadora.
O próprio artista vê-se um trabalhador.
"Ele não pensa na arte como um lugar de exceção, especial, autônomo ou livre, em relação a outros trabalhos. Isso é um projeto ético. Quando fez o 'Santuário dos Três Reinos', os operários, que seriam mão de obra, se transformaram em artistas. De fato, Zé tem isso como projeto ético: tanto a arte é trabalho quanto qualquer trabalhador é, essencialmente ou pode ser, um artista", analisa Clarissa Diniz, citando o conjunto de esculturas em pedra que serão mostradas na exposição por imagens captadas por drone. Elas estão numa fazenda próxima ao Recife, mas de difícil acesso, devido à alteração do volume de um rio.
A mostra reúne obras de colecionadores privados, datadas desde a década de 1950, portanto iniciais. A tela que dá nome, "Primeiro a Fome, Depois a Lua", pertence ao Museu de Arte do Rio (MAR). Um letreiro de 1968 que nos fala de hoje.
Também compõem a exposição cadernos com desenhos feitos numa expedição pelo rio Madeira, na Amazônia, coordenada pelo zoólogo Paulo Vanzolini em 1975, e uma série de carimbos, produzidos nos anos 1960. À época, empregado na Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste (Sudene) como desenhista de mapas, ele criou um carimbo, esculpido em borracha com estilete, para preencher grandes campos de vegetação, como coqueirais e canaviais. Daí então, aplicou a técnica na arte, no que se aproximou do movimento de poesia visual Poema/processo.
"Em todas essa situações, ele não separou o trabalho como empregado do de artista. O fio condutor é a ideia de trabalho", conclui a curadora, que ainda puxou cartazes e pinturas murais desenvolvidas por ele para campanhas eleitorais, além de crônicas para jornais. "É um artista extremamente complexo e um dos mais instigantes que temos no País."
Sobreviveu pela pintura
José Cláudio, quem sabe como alguém que faz do trabalho pulsão de vida, diz que a pintura, para ele, "talvez seja uma terapia". "Se não fosse isso, eu tinha ficado doido ou morrido", completa. "Nunca perdeu a graça pra mim", fala em outro momento.
Quando menor, sonhou em chegar aos 21 anos. Ao completar a maior idade, não calculou outra linha de chegada. Pergunto como se sente tendo chegado aos 90: "Eu não tenho que gostar ou não gostar que tenho 90 anos. Não tenho nenhuma doença que doa. Pra mim é ótimo".
Está casado há 62 anos com Leonice Ferreira, tem dois filhos — um deles também artista, Mané Tatu —, é avô de três e agora bisavô de Bernardo, filho da neta Emília. Depois da exposição na Galeria Marco Zero, que se encerrará no dia 1º de outubro, ele e seu trabalho serão comemorados numa mostra na galeria Nara Roesler, em São Paulo, ainda em outubro.
E continua a pintar. "Eu sobrevivi a vida toda a partir disso."
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