Luê celebra a cultura paraense com pop eletrônico: 'O Brasil ainda tem muito o que conhecer do Norte'
Artista lança álbum "Brasileira do Norte", que flerta com ritmos tradicionais na região amazônica como boi, zouk, retumbão e marabaixo
Do carimbó de Dona Onete ao tecnobrega de Gaby Amarantos, o Pará tem uma riqueza musical bastante particular. A cantora e compositora Luê faz um passeio por essas tradições e inovações sonoras do seu Estado de origem no disco "Brasileira do Norte", lançado na última semana nas plataformas digitais.
Com 16 faixas, o projeto une a cultura nortista, incluindo ritmos tradicionais na região amazônica como boi, zouk, retumbão, marabaixo, ao pop eletrônico. O resultado é o álbum mais "identitário" da artista, que também já lançou "A Fim de Onda" (2013) e "Ponto de Mira" (2017). Em tempo: "Brasileira do Norte" é dividido em dia e noite - seção que começa após a faixa "[Boizinho]".
As músicas contam com participações de vários artistas nortistas, como as já citadas Gaby Amarantos e Dona Onete, além de Fafá de Belém, Felipe Cordeiro, Zaynara, Félix Robatto, Wena Jansen, Raidol, Victor Xamã, Yasmin Olí e Izy Mistura. Apenas um nordestino - e pernambucano! - figura no repertório: Johnny Hooker.
"Eu fiz questão de somar com muitas pessoas do Norte em várias áreas do trabalho, até mesmo na fotografia e na direção de arte. Mas os nordestinos são como primos distantes nossos. Carregamos o Brasil nas costas [risos]. Quando eu ouvi 'Saudade', senti que tinha que ser o Johnny. Tinha que ter uma certa voz. Apesar dele não ser do Norte, tinha que ser ele", diz Luê, ao JC.
'Me senti fragmentada'
"Comecei a sentir a vontade de contar uma história de novo. Álbuns traduzem melhor um conceito, uma estética completa, do que um single. Mas do que eu iria falar? Existiu um momento em que eu não sabia qual era a minha motivação", continua Luê.
"Sou consumidora de música pop, de música eletrônica, então estava tudo muito diluído. Estava me sentindo muito fragmentada, artisticamente falando. Existem milhares de camadas de referências. Então, cheguei no núcleo de tudo, que é o lugar de onde venho, que é rico demais, em tantos aspectos. Isso ocorre não só nas letras, ao falar desse Norte, mas nos ritmos. Essa foi a minha primeira escola de música."
Luê tem formação em violino clássico, aprofundou seus estudos na Orquestra Sinfônica da Escola de Música da UFPA, em Belém. Influenciada pela música regional desde a infância no Conservatório Carlos Gomes, é filha de Júnior Soares, fundador do Arraial do Pavulagem. Na Marujada de São Benedito, descobriu a rabeca, sua marca registrada.
'Ainda temos muito a nos conhecer'
A decisão artística de Luê está em sintonia com um novo momento de valorização (e até um orgulho) de estéticas ditas como "regionais" no contexto musical do Brasil. Esse novo momento ocorre, em parte, pela liberdade criativa proporcionada pelo contexto digital - mesmo com todas as suas limitações.
"Sinto que estamos em um momento de orgulho mesmo. Há uma curiosidade maior sobre o que ocorre no Norte. Espero que não seja apenas uma moda ou uma onda. De alguma maneira, eu senti essa onda antes, mas sinto que é diferente agora. As pessoas estão muito mais orgulhosas do que antes. Por outro lado, acho que ainda temos muito a nos conhecer, mesmo dentro do Norte. A região é gigantesca", conta Luê.
"Acredito que o pop se distanciou do regional por um bom tempo. Acho que isso o que estou propondo é a minha grande busca, gosto de experimentar. Acho que a arte está aí para isso: ser um meio de expandir. Minha busca é fazer essas conexões, entre esses dois mundos que parecem tão distantes. Como podemos unir tudo isso a um elemento eletrônico, um beat? Podemos fazer isso acontecer."
Ao unir sonoridades amazônicas com batidas tecnológicas, Luê opina que o brega foi o gênero musical que mais se propôs a "brincar com a tecnologia" no contexto paraense. "Mesmo com a escassez. É um som de origem periférica. Eles não tinham acesso a um puta computador, com programas. O que fazer com o que existia? Surgiu essa coisa linda, incrível, que foi o tecnomelody. As festas são absurdas."
'Existe muita confusão entre Norte e Nordeste'
Apesar de toda a diversidade e singularidade, a música do Norte ainda luta por espaço em programações de destaque do País. Recentemente, a ausência de artistas nortistas na programação do Rock in Rio, que dedicou um dia à música brasileira em sua edição de 40 anos, suscitou críticas de nomes como Gaby Amarantos e Fafá de Belém.
"Isso está longe de ser superado. Temos que insistir muito ainda. O Brasil não tem acesso a outras camadas do País. O Brasil que se conhece é, em sua maioria, o do eixo Rio-São Paulo. Eu senti dificuldade para acessar outras camadas, ou me fazer ser compreendida e escutada. Existe uma barreira para ritmos que as pessoas não entendem muito bem", opina Luê.
"Existe muita confusão entre Norte e Nordeste, inclusive. Nós somos muito apagados enquanto pessoas do Norte. Quero muito trazer essa bandeira, acho importante que a gente continue batendo nessa tecla. Ainda há muito para o Brasil conhecer do Norte, assim como nós, nortistas, podemos nos conhecermos melhor."