Como o trap de Pernambuco vem ganhando identidade própria
Artistas têm explorado a estética do trap para dialogar com ritmos como brega, brega-funk, piseiro e até forró pé-de-serra e cultura popular
A música em Pernambuco possui um histórico na mistura das sonoridades ditas "globais" com ritmos e estilos regionais. O primeiro movimento a vir à cabeça nesse sentido, é claro, é o manguebeat. Mas também poderíamos citar o udigrudi, uma adaptação local para o rock psicodélico.
Um fenômeno que repete essas experimentações tem ocorrido com o trap, vertente marcada por beats mais dançantes, uso do autotune nos vocais e letras mais descontraídas.
No Estado, artistas têm explorado a estética sonora e visual do trap para dialogar com ritmos da terra, como o brega, o brega-funk, o piseiro e até mesmo o forró pé-de-serra ou cultura popular. São justamente esses artistas, como Mago de Tarso, Brenu, HoodBob e Léo da Bodega, que têm despertado uma maior atenção do público, seja dentro ou fora de Pernambuco.
Isso torna-se ainda mais interessante ao considerar que os ouvintes do trap, em sua maioria, ainda tem olhos voltados para o que ocorre no eixo Rio-São Paulo. Consequentemente, esse público ainda está acostumado a ouvir músicas com sotaques e expressões específicos.
Caranguejo do trap
Do município de Jaboatão dos Guararapes, no Grande Recife, Mago de Tarso iniciou a carreira em batalhas de rima, sendo vice finalista da seletiva estadual para o Duelo Nacional da Jornada de MCS edição 2018.
Contudo, foi a partir do ano passado que o trapper viu a carreira "virar". Às vésperas do São João, ele lançou a faixa "Carolina Freestyle", em parceria com Brenu e o produtor Prodbythb, usando um "sample" do clássico de Luiz Gonzaga. "A música bateu 100 mil plays nas plataformas, então entendi que eu deveria apostar mais nessa estética", diz Mago, ao JC.
Em seguida, veio o sucesso "Caranguejo do Trap", que acumula mais de 2,3 milhões de reproduções no Spotify. Desta vez, a homenagem é feita ao manguebeat, movimento que tinha o caranguejo como símbolo. "Quando passei a mesclar com sons mais regionais, comecei a beber mais dessa fonte, assim como bebo do Luiz Gonzaga, do Reginaldo Rossi ou da Musa do Calypso".
Despertando o interesse de gravadoras do Sudeste, Mago de Tarso assinou com a Baguá Records e irá lançar o seu primeiro álbum de estúdio, "O Som do Litoral", em outubro.
A sua aproximação com o forró rendeu uma parceria com um dos maiores nomes do forró estilizado: Xand Avião. A faixa "Feito Para Voar" tem sample de "Mulher Doideira", sucesso da banda Aviões do Forró.
"Eu via muitas pessoas da cena querendo ser carioca, torcendo para times de fora, acho que isso ainda é muito presente. Eu mostro essas referências para que a nova geração tenha contato. Os jovens que ouvem trap gostam disso. Mas acredito que são poucas pessoas que se importam com isso. O pessoal quer fazer sucesso e dinheiro, acho que não estão preocupados e muita coisa permanece desse jeito", diz.
"Minha família é toda do interior, então trago alguns ditados que o meu avô falava, por exemplo. As pessoas às vezes acham que você está querendo ser o que não é. O pessoal do Recife é muito crítico, mas não tem ninguém da cidade no 'mainstream'. Em Fortaleza, me abraçam mais que no Recife. Acho que é um processo natural de quem começa a furar uma bolha."
Escama Trap
Parceiro de Mago de Tarso em muitas faixas, Brenu também tem se destacado na cena e lançou a mixtape "Escama Trap", em que passeia por ritmos como brega-funk (incluindo parceria com Anderson Neiff), brega e piseiro.
Com lançamentos desde 2018, o jovem de 22 anos, morador da Zona Oeste do Recife, chegou em sua atual fórmula com "Tempestade" (2023), que tinha um sample do brega-funk "Parceria Tempestade", de Felupe na Voz e Sony no Beat com refrão de MC Danny. A adaptação para as batidas do Jersey Club (vertente do trap) foi de Ian Guxtavo, grande parceiro do jovem.
"Esse subgênero estava fazendo muito barulho no eixo Rio-São Paulo. Eu sabia que o Recife tinha muito público de trap, pois tivemos festivais de trap com público de 40 mil, mas sem nenhum artista daqui. Eu pensei: 'o meu som precisa chegar na galera de algum jeito'", diz Brenu.
"Muitas pessoas já mesclavam ritmos antes de mim, mas acredito que eu comecei a explorar mais os subgêneros do trap. Percebo que outros artistas também percebem que podem usar as suas próprias gírias e não precisam imitar cariocas ou paulistas."
Apesar dessas novas movimentações, Brenu ressalta que ainda existe um desafio de criar uma cena regular de shows de trap na cidade. "Em termos de eventos, aqui ainda é bastante subdesenvolvido. Quem trampa nos grandes eventos não entende muito de trap. Quando rola shows mais undergrounds, por exemplo, alugam algum lugar, porque existe a vontade. Nos bastidores, já existem conversas para fazer eventos com maior regularidade, para um público de 400 pessoas, criando uma cena de shows fixos para ocorrer com o tempo."
A mixtape "Escama Trap" também conta com outras parcerias que dialogam com esse universo sonoro regional, como Raiane Margot, HoodBob, Deox e Mago de Tarso.
TrapBrega
O cantor e compositor recifense HoodBob vem fazendo experimentações para unir o trap ao brega desde 2018, quando lançou a faixa "Diario", fazendo uma nova interpretação do sucesso da banda Frutos do Amor.
Neste ano, ele lançou a "DJ Topó Mixtape: A Potência do Trapbrega". O título faz referência à coletânea de música brega que circulava no Grande Recife nos anos 2000 (DJ Topó) e à tradição de lançamentos no formato de "mixtape" no hip hop norte-americano.
No projeto, três fases do brega (brega romântico, brega-funk e batidão romântico) se unem ao trap e seus subgêneros. A produção musical conta com nomes como Marley no Beat, que produziu sucessos de Shevchenko e Elloco.
"Acredito que essa similaridade entre os ritmos tenha a ver com a afrodiáspora, algo originário do tambor, que se espalhou pelo mundo ao longo dos processos históricos e culturais, ocorrendo de forma paralela em vários locais do mundo. O brega-funk, por exemplo, é uma música eletrônica negra, assim como o rap. Eu quero trazer a roupagem futurista do trap para a vanguarda do brega raiz, fazendo com que o pop e o popular funcionem juntos."
"O processo de criação foi um laboratório de pesquisas instrumentais. A cena do trap e do brega estão se aproximando de uma forma inevitável. A DJ Topó Mixtape veio mapear isso, propondo uma revolução nos cenários desses dois ritmos no Recife, fazendo os dois funcionarem juntos."
Som que vem de Olinda
Natural do Sítio Histórico de Olinda, Léo da Bodega vem unindo o trap ás suas vivências com a cultura popular. Ele toca rabeca desde os 6 anos e foi caboclo de lança no Maracatu Piaba de Ouro, sendo apadrinhado pelo Mestre Salustiano (1945-2008). Durante a carreira, já lançou sucessos "Canto da Sereira" e "Anjo".
Recentemente, Léo assinou com a Head Media, empresa responsável pelo gerenciamento de carreiras sediada em São Paulo e que já trabalhou com nomes como Karol G e Jão. Agora, o jovem pernambucano se prepara para lançar o seu primeiro álbum, "Botija".
"As principais influências sonoras são mestres da cultura popular de Pernambuco que ouço por toda vida. O fio condutor deste projeto são as misturas dos instrumentos e ritmos da cultura popular pernambucana, como por exemplo instrumentos de Maracatu como Alfaia, Caixa, AB, ganzá com sintetizadores e baterias eletrônicas", disse o artista na ocasião do lançamento de "Odara", single que inaugurou a atual fase da sua carreira.
Agora, o trap em Pernambuco busca uma consolidação. Esses artistas já mostram que é possível transformar o som do Estado, ressignificando tradições e inovando no processo criativo. O futuro depende de muitas variáveis, mas eles artistas já contribuem ao moldar o som no presente.