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40 anos de Permanent Waves, a onda que mudou o Rush

ANTOLÓGICO Lançado há 40 anos, Permanent Waves marca a ruptura de estilo da banda e permanece reverenciado por críticos e fãs

João Carvalho
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João Carvalho
Publicado em 03/11/2020 às 6:33 | Atualizado em 03/11/2020 às 6:35
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HISTÓRIA. A Rush foi formada em 1968, em Toronto. Chegou ao fim em janeiro de 2020, após a morte do baterista Neil Pert - FOTO: DIVULGAÇÃO

Quem chega à casa de Geddy Lee em Torono, no Canadá, e visita o sótão transformado num aconchegante estúdio, é surpreendido com dezenas de baixos e guitarras. Estão lá, pendurados em todos os espaços disponíveis, nas paredes decoradas com papéis em xadrez. Num canto mais discreto, um modelo Fender Jazz Bass, feito à mão, com uma história que se interlaça com a de Geddy e seus companheiros do Rush, Alex Lifeson e Neil Peart.

O baixo foi construído com a madeira da porta da sala de som do Le Studio, estúdio canadense destruído por um incêndio há três anos, também conhecido como o marco de uma mudança na carreira do trio, entre anos de 1979 e 1980. Ali eles tomaram outra estrada para a maneira de criar músicas e letras, registradas no disco Permanent Waves, o sétimo da banda, que está completando 40 anos em 2020. A obra encontrou o Rush no topo da inspiração, reconhecida por crítica e público.

Nessa época, a música mundial passava por transformações. Na esteira do punk, os sons que dominavam o cenário popular estavam sendo criados por bandas como Talking Heads e The Police, que acabaram também influenciando o trio canadense, uma forte fonte de inspiração. Sendo assim, o Permanent Waves veio com músicas mais curtas, de olho na chegada desse "new wave pós-punk", flertando até com o reggae, totalmente diferente das criações épicas, escritas para o álbum anterior, Hemispheres, de 1978, ou para o badalado 2112, de 1976, quando o grupo ganhou uma certa independência da gravadora. Com esse novo material, eles deixavam de lado o conceito de álbuns longos e temáticos.

Mesmo se aproximando das novas tendências, os três mantiveram o toque hard rock. "Nesse ponto, estávamos divididos com o tipo de música que queríamos fazer, em termos de duração", lembra o vocalista, baixista e tecladista Geddy Lee, na biografia Limelight, de Martin Popoff, lançada recentemente. "Tínhamos caído nesse padrão de escrita, esses versos realmente longos e que começaram a nos parecer uma fórmula previsível. Ficou meio chato, mas ainda gostávamos de tocar músicas assim, complicadas. Então, tivemos a ideia de tentar fazer as peças longas, mas... com muito mais rapidez. Portanto, em cinco, seis minutos, em vez de vinte", diz Geddy.

Permanent Waves demonstraria uma série de avanços, em parte impulsionados pelos caras quando mudaram o ambiente em que trabalhavam. Antes, criaram músicas durante turnês, em estúdios na Inglaterra, por exemplo, sem tempo para descanso, muito tempo longe das famílias. Depois de dois discos feitos no Rockfield Studios, no País de Gales, a banda voltava para casa, gravando no Le Studio, em Morin-Heights, Quebec, Canadá, situado no lago Perry e no sopé das espetaculares montanhas Laurentian. Mas antes disso, a banda passou por um retiro rural, com a criação de composições e ensaios ocorrendo numa fazenda em Lakewood Farms, também em terras canadenses. Durante seis semanas, o equipamento foi montado no porão e Neil Peart se trancou numa cabana próxima, se dedicando às letras. Enquanto o "Professor" compunha, Alex experimentava sons com suas guitarras , enquanto Geddy ia testando sua grandiosa (e nova) coleção de instrumentos, muitos eletrônicos.

A primeira coisa criada de fato foi uma instrumental com um título sem sentido: Uncle Tounous: basicamente uma junção de diferentes ideias e um teste para efeitos musicais, como registra um dos estudiosos do trio, o carioca Vagner Cruz, no Rush Fã Clube Brasil, maior site sobre a banda em língua portuguesa. "Não é possível encontrar Uncle Tounous em nenhum álbum, pois a canção foi apenas o que alguns poderiam considerar um protótipo, sugestões' incorporadas ou que formaram base para toda uma coleção de diferentes timbres", explicou. As músicas foram aprimoradas ainda mais durante um punhado de datas da turnê de aquecimento, além de sessões demo.

"Foi o primeiro disco que fizemos no Le Studio, foi um prazer trabalhar lá ", lembrou Alex. "Montamos uma rede de vôlei numa quadra em frente aos quartos onde estávamos hospedados. Acendemos as luzes para que pudéssemos voltar às duas da manhã, quando terminássemos a gravação, jogar vôlei por algumas horas e beber", lembra.

O PROCESSO

O contato com a família foi outro ponto positivo na concepção do Permanent Waves. Todos moravam no sul de Ontário naquela época, relativamente perto do estúdio. Portanto, era conveniente, recebiam até a visita dos familiares. "Era uma casa longe de casa", citou Alex Lifeson.

As primeiras canções a serem finalizadas foram The Spirit of Radio, Freewill e Jacob's Ladder. Essas e outras músicas do disco foram sendo lançadas durante os shows haviaM marcado simultaneamente à gravação do álbum.

Tudo isso ficou refletido já na abertura. The Spirit of Radio é inspirada em uma estação de rádio homônima e contando um discurso nostálgico. "É sobre a integridade musical", definiu o baterista Neil Peart, na biografia Visions, de Bill Banasiewicz (Neil faleceu em janeiro passado, vítima de um câncer no cérebro).

"Queríamos passar a ideia de uma estação de rádio tocando uma grande variedade de músicas. Há trechos de reggae e um ou dois versos com uma sensação new wave. Os refrões são muito eletrônicos, trazendo um sequenciador digital e uma contagem em riff de guitarra. Os versos são padrões do Rush, sempre em frente", explicou Peart.

Depois, Freewill vem como uma composição magistral, uma das mais exaltadas e admiradas do Rush. Cativante, progressiva, melódica e instigante. Uma volta ao tema do individualismo, autodeterminação e agnosticismo.

Repletas de mutações, como "medos fantasmas", "gentileza que pode matar", "vítima do destino venenoso". As palavras viram brinquedos de Neil Peart e ele se diverte com isso.

Seguindo, Jacob's Ladder é o ponto distinto e marcante do álbum. Um rock progressivo lindo e astuto, melodioso, um pouco mais no espírito do Hemispheres. Os sintetizadores se destacam, entrelaçados no que é uma expressão típica do "metal progressivo" da banda.

A partir daí, duas canções se complementam. Entre Nous e Different Strings falam sobre a diferença entre as pessoas, as relações humanas. Curiosamente, com o mesmo enredo, mas escritas por mãos diferentes. Entre Nous traz letra de Peart (Acho que está na hora de percebermos/ Que os espaços / Dão margem / Para eu e você crescermos). Em Diferent Strings, Geddy Lee se aventura pela última vez escrevendo uma letra para o Rush (Tudo que realmente existe/ Somos nós dois/ E ambos sabemos por quê progredimos).

Por fim, mais um épico no melhor estilo do Rush. Natural Science é um dos melhores trabalhos de estúdio já escrito para o rock progressivo. Neil trabalhava em algo baseado no romance Sir Gawain & The Green Knight , do século XIV, mas não conseguiu fechar nada que pudesse levar e gravar de imediato. Havia uma lacuna. "No estúdio, uma canção foi tomando forma a partir de trechos de Gawain, além de algumas ideias reescritas", pontuou Peart.

A canção, com poucos mais de 9 minutos, é composta por três partes - Tide Pools, Hyperspace e Permanent Waves, de onde saiu o título do disco- passando por biologia, ecologia, física e sociologia. "É uma faixa muito ambiciosa", reiterou Alex Lifeson. Entre efeitos e contratempos, Geddy Lee ainda brincou, gravando o som de trovão no meio da música, simplesmente sentando no teclado.

Injustiça não citar a produção de Terry Brown no trabalho com Alex, Geddy e Neil, para encontrar o som exato que o Rush estava procurando. Desde que assumiu os consoles nos estúdios, ainda no início da carreira do trio canadense, Terry ajudou no amadurecimento do som. Procurado por nossa reportagem, Brown se disse abalado com a morte de Neil Peart e preferia não comentar detalhes. "Neste momento tenho de recusar. Foi há 40 anos quando fiz essa gravação. Acabamos de perder uma pessoa importante, que foi Neil", disse por e-mail. "Fico feliz em saber que vocês gostam do trabalho", concluiu.

Com uma musicalidade fantástica, além de temas e letras marcantes, Permanent Waves não deixa de impressionar, mesmo 40 anos depois. É um significativo trabalho na carreira do Rush. "Damos ao público o mesmo crédito que damos a nós mesmos", afirmou Peart. "Se soa bom para nós, que nos empolga e que nos faz pensar, teoricamente terá esse efeito também em outras pessoas".

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MOMENTO Para gravar o disco, a banda voltou para o Canadá e se isolou - FOTO:FIN COSTELLO/DIVULGAÇÃO
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MUDANÇA Capa de Permanent Wave, que veio com músicas mais curtas - FOTO:DIVULGAÇÃO
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LIGADOS Permanent Waves recebeu influências do punk e do reggae em ascensão no cenário da música e se tornou um marco - FOTO:DIVULGAÇÃO

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