“A fome é amarela e dói muito.” A frase é da escritora negra Carolina Maria de Jesus, mas serve ao momento da ambulante Jaqueline Araújo, 43 anos. Há 36 horas sem comer, ela saiu do barraco onde mora em Jardim Brasil (Olinda), às 4 horas da manhã na última quinta-feira (23), decidida a buscar informações sobre seu auxílio emergencial. O benefício já estava aprovado, mas o dinheiro ainda era virtual. Na agência da Caixa Econômica de Casa Amarela, deparou-se com uma fila gigante e recebeu a ficha de número 2.431. Jaqueline chorou. Chorou o desespero da fome, chorou a revolta da espera, chorou a desigualdade, chorou o rebuliço provocado pelo coronavírus na vida das pessoas.
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A dor da vendedora informal comoveu as pessoas. Logo apareceu uma moradora (Dona Gerusa) com café e pão. Depois, essa mesma mulher foi até um mercadinho e voltou com alimentos para Jaqueline, estimulando uma rede de solidariedade na própria fila. Os R$ 1.200 do auxílio ela só vai receber na próxima quarta-feira mas, pelo menos, não terá que contar as horas de fome até lá, graças a ajuda da própria população. Jaqueline trabalha como ambulante nas integrações dos ônibus e do metrô, vendendo pipoca e água. Nos intervalos do trabalho informal também cata latinha, garrafa e papelão para reciclagem (assim como fazia Carolina de Jesus).
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A história de Jaqueline escancara a vulnerabilidade dos trabalhadores informais no Brasil. Pelo dado mais recente do IBGE, são 38,7 milhões de pessoas nessa condição, o equivalente a 41,1% da população ocupada. Em Pernambuco, a taxa chega a ser ainda maior (48,8%), atingindo 1,8 milhão de pessoas. A inesperada pandemia da covid-19 exigiu medidas restritivas da frequência das pessoas nas ruas, com a necessidade de fechamento de todas as atividades não essenciais em Pernambuco. As mudanças atingiram todos os trabalhadores, desde os que perderam seus empregos, os que tiveram seus contratos de trabalho suspensos ou os que tiveram redução da jornada e do salário. No caso dos informais, o risco da atividade que eles desenvolvem é todo deles. Se não fatura, não tem a garantia da renda. É o que está acontecendo com ambulantes e muitas outras categorias de informais.
O auxílio emergencial de R$ 600 por três meses do governo federal (podendo chegar a R$ 1,2 mil em caso de mulheres chefes de família) é a única alternativa de receita para a maioria dos informais, mas a dificuldade é fazer o dinheiro chegar à população. Pesquisa do Instituto Locomotiva mostra que 5,5 milhões de pessoas que se enquadram nos critérios para receber o auxílio podem ficar de fora, porque não têm conta em banco nem acesso regular à internet. Mais uma vez, a ambulante Jaqueline serve como exemplo.
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“Quem fez o cadastro pra mim foi minha vizinha, agora estão dizendo que precisa ter uma conta pelo celular para receber o dinheiro. Eu não tenho celular nem sei mexer nessas coisas de internet. O que a gente precisa é do dinheiro pra comer, porque quem tem condição já está com seus estoques em casa e a gente passando fome”, diz.
Os senegaleses que trabalham como ambulantes em Pernambuco também tentam ter acesso aos recursos. Há seis anos no Brasil (a maior parte do tempo no Recife), Thierno Kane, conta que deu entrada no pedido do auxílio, mas que está em análise. “Sem trabalhar, a situação está ficando difícil, porque vivemos do que vendemos nas ruas”, conta, dizendo que antes do coronavírus estava trabalhando na Conde da Boa Vista. “Muitos auxílios ainda estão em fase de análise, mas como ninguém espera pra comer, a Prefeitura do Recife repassou mil cestas básicas que recebeu de doação aos ambulantes”, destaca o presidente do Sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras do Comércio Informal (Sintraci), Edvaldo Gomes.
Infelizmente, a informalidade é uma tendência mundial e vem crescendo no mundo. O relatório Trabalho para um futuro mais brilhante, publicado em 2019 pela Organização Internacional do Trabalho (OIT), mostra que existem 2 bilhões de trabalhadores informais ao redor do globo e que já é maior o número de informais (61%) do que de formais (39%). O documento sugere que as empresas apostem em ocupações sustentáveis e decentes para diminuir esse processo de precarização do trabalho.
DIREITO
Especialista em Direito do Trabalho, Renato Melquíades, do escritório Martorelli Advogados, explica que os informais estão expostos a riscos. “Todo o Direito do Trabalho tradicional é aplicado aos empregados. Ele foi criado justamente quando o contrato de trabalho sob vínculo empregatício passou a existir. São contemporâneos e correlacionados. Diante desse cenário de predomínio do trabalho informal e sob conta própria, o Direito do Trabalho se vê ameaçado. Estudiosos como o francês Alain Supiot e o pernambucano Everaldo Gaspar defendem que ele se destine à promoção do trabalho digno em relação a todos os homens que precisam vender a sua força de trabalho, e não apenas a empregados”, assinala. Melquíades também destaca que a Convenção nº 190 da OIT traz um sopro de esperança sobre esse tema porque pela primeira vez na história prevê a aplicação do direito para empregados e demais trabalhadores.
O que a OIT resolveu fazer agora é a base da teoria do professor de Direito do Trabalho da UFPE, Everaldo Gaspar, há muitos anos. Ele conta que o contrato de trabalho foi criado pela burguesia e que o tempo tratou de modificar o mercado e as relações. “O Direito não pode se basear mais no contrato, porque dessa forma não vai estar protegendo nem a metade. É necessário incluir toda alternativa de trabalho e renda”, defende. Só assim os informais sairão dessa condição de excluídos.
* Jaqueline Araújo foi encontrada pelo repórter da TV Jornal, Leonardo Vasconcelos, e pelo cinegrafista Tião Siqueira, quando faziam reportagem sobre o auxílio emergencial na última quinta-feira (23). A matéria foi publicada no telejornal o Povo na TV. Depois, o JC voltou a entrevistá-la para essa reportagem por meio do celular de uma vizinha. Na conversa, Jaqueline tornou a chorar, mas dessa vez de alegria por ter comida em casa até que o auxílio se materialize em dinheiro. Desejamos que a dinâmica de chegada do benefício à população seja corrigida para que as pessoas não precisem passar por isso.
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