O que está mudando na relação entre trabalhadores e empresas de aplicativos
Decisão recente da justiça britânica que concedeu alguns direitos trabalhistas a motoristas de aplicativo pode ser o início da mudança no modelo de negócios dessas empresas
Quando a Suprema Corte do Reino Unido decidiu, no mês passado, que os motoristas da Uber devem ter acesso a direitos trabalhistas e não serem considerados apenas autônomos, houve um grande debate mundial sobre a chamada economia compartilhada e a sua relação com a legislação trabalhista. A discussão agora é como outros tribunais, ao redor do mundo, vão julgar processos semelhantes que envolvem plataformas digitais de trabalho por demanda. A Justiça brasileira, até agora, mantém o entendimento de que não há vínculos entre plataformas digitais e trabalhadores que as utilizam.
O processo decidido no Reino Unido em favor dos trabalhadores é de 2016, e foi aberto por dois e ex-motoristas em um tribunal do trabalho de Londres. A sentença inicial foi favorável aos trabalhadores, mas a Uber recorreu em 2018, e só em fevereiro deste ano, em julgamento de apelação, a Suprema corte manteve a decisão. No início, a Uber pretendia reconhecer os direitos apenas do grupo que moveu a ação contra a empresa mas, na semana passada, decidiu estender o vínculo trabalhista a cerca de 70 mil motoristas cadastrados no Reino Unido que agora passam a ter direito a um salário mínimo, férias remuneradas e a um plano privado de previdência com contribuições compartilhadas entre a Uber e o motorista.
As plataformas digitais de trabalho quintuplicaram em todo o mundo na última década, segundo o último relatório da Organização Internacional do Trabalho (OIT), passando de 142 em 2010, para cerca de 700 em 2020. A OIT diz em seu estudo que “esse crescimento ressalta a necessidade de diálogo político internacional e de cooperação regulatória, a fim de fornecer oportunidades de emprego decente e de promover o desenvolvimento de negócios sustentáveis”. O relatório da OIT ouviu 12 mil trabalhadores e representantes de 85 empresas e menciona: “a jornada de trabalho costuma ser longa e imprevisível. Metade dos(as) trabalhadores(as) de plataforma digital ganha menos de 2 dólares americanos por hora”. O relatório também cita que as plataformas digitais proporcionam oportunidade de trabalho que não existiam antes, sobretudo para mulheres, jovens e grupos minoritários mas “estão apagando ainda mais a distinção antes bem definida entre empregados e autônomos”.
TECNOLOGIA
Pierre Lucena, presidente do Porto Digital, um dos principais ecossistemas de tecnologia do Brasil, acha que o vínculo empregatício é incompatível com a nova economia, mas o que ele chama de “irresponsabilidade social”, também é. “Quando a Gig Economy surgiu, que é o termo em inglês para o que chamamos de economia compartilhada, se esperava que ela melhorasse a vida de muita gente. E melhora. Há sete anos, se um vendedor perdesse o emprego, ele tinha que esperar aparecer outra oportunidade na área dele. Hoje, ele pega a recisão, compra um carrinho e vai dirigir para uma plataforma de aplicativo. Então a economia compartilhada dá um alento para quem é da Classe C”, diz Lucena.
Para o presidente do Porto Digital, algo saiu errado quando, em vez de promover ascensão social, as plataformas de trabalho por demanda escancararam as desigualdades. “A raiz do problema é que a economia compartilhada não fez o catador de papelão subir de atividade e virar entregador de aplicativo de bicicleta. O que aconteceu é que o engenheiro virou motorista de aplicativo. O problema real é a baixa geração de empregos de qualidade que deveria absorver os profissionais qualificados”, diz Pierre Lucena. Ele acredita que o vínculo empregatício cria um impacto grande na economia compartilhada. “O espírito da empresa da Gig Economy é o trabalho sob demanda, e não fazer com que o cara vire um funcionário. Na verdade, tudo isso já existia antes. Você tinha o taxista que não era dono do táxi e pagava uma renda para alguém. Você tinha o motoboy que fazia entrega para a pizzaria... o incômodo generalizado é que alguém chegou e transformou isso em um modelo de negócio e deu escala pra ele”.
Lucena reconhece que há um sentimento de que há pouco apoio para os trabalhadores da nova economia e indica algumas ações que poderiam ser tomadas para mitigar o problema. “Poderia ser um seguro para o entregador, caso ele sofra um acidente. Ou uma câmera colocada no carro para gravar as corridas e dar mais segurança aos motoristas. São táticas que talvez melhorassem essa relação. Eu acredito que acabaremos encontrando um certo equilíbrio. Temos que encontrar”, diz Lucena.
JUSTIÇA
Vanessa Patriota da Fonseca, procuradora do trabalho, diz que a decisão como a que aconteceu no Reino Unido já está acontecendo em outros países. “Tivemos na França, a Corte de Casación, o órgão equivalente lá ao TST, reconhecendo o vínculo entre trabalhadores e uma empresa de entrega. A Corte Federal do Trabalho da Alemanha também decidiu que até os trabalhadores de plataformas multitarefas podem ser considerados empregados; a Espanha anunciou um decreto de Lei que prevê a presunção de vínculo de emprego para entregadores de plataformas. O fato é que não podemos olhar para as relações de trabalho do século 21 com o olhar do século 20”, diz a procuradora.
A procuradora vê o surgimento de uma nova maneira de organização do trabalho mas, para ela, a forma de subordinação dos trabalhadores às empresas é a mesma. Nesse novo regime, diz Vanessa Patriota, é o aplicativo que dá as ordens. Para a procuradora, a ausência de um chefe presente gera a falsa impressão de que o trabalhador tem total autonomia quando, na realidade, essa autonomia é mitigada pelos parâmetros estabelecidos pela plataforma.
“O algoritmo comanda. Distribui os trabalhadores de acordo com a demanda, aplica punições, impõe o preço do serviço, mas na realidade não é o algoritmo que define nada, é o homem que está por trás dele. O valor da tarifa é fixado pela empresa sem qualquer consulta prévia aos entregadores ou motoristas e a gente sabe que o autônomo é aquele trabalhador que diz o quanto vale o seu trabalho”, argumentou. Segundo a procuradora, o Brasil já conta com uma legislação que dá respaldo ao vínculo empregatício entre plataformas digitais e quem exerce atividade remunerada por meio dele. “O parágrafo único do artigo 6º. da CLT já diz que os meios telemáticos e informatizados de comando, controle e supervisão se equiparam aos meios diretos de comando para fins de subordinação jurídica” Vanessa informa que no Tribunal Superior do Trabalho (TST), duas decisões da turma do juiz Ives Gandra julgaram improcedentes os pedidos de vínculo de emprego entre plataformas digitais e trabalhadores. “Mas há uma outra ação, tramitando em uma outra turma, já com o voto definido de outro juiz pela procedência do pedido de reconhecimento de vínculo. Não houve decisão dessa ação ainda porque dois ministros pediram vistas do processo. O que a gente espera é que decisões como a do Reino Unido despertem a consciência do judiciário brasileiro para que venham a trilhar esse mesmo caminho”, espera a procuradora do trabalho.
Para João Galamba, advogado trabalhista, sócio do GCFH Advogados, não se trata de colocar os trabalhadores por meio de aplicativos em um regime de carteira assinada, mas dar a eles condições de trabalho. “Estipular, por exemplo, um salário mínimo, um tempo de descanso. Aqui, o que as plataformas pregam é que quanto mais ele trabalha, melhor será a remuneração. Na verdade ele está vendendo a força de trabalho dele para a empresa que ainda transfere para o trabalhador uma série de custos e riscos. Para muitos [trabalhadores], é melhor do que nada”, diz Galamba. O advogado também acredita que a legislação brasileira já contempla um entendimento à respeito da questão. “Quem tem que se adequar a realidade do Brasil são as empresas da economia compartilhada. E não o Brasil se adaptar a elas”, afirmou Galamba.
UBER
A Uber informou através de nota que o status de "worker" (trabalhador) é uma classificação específica da legislação do Reino Unido e que no Brasil em julgamento recente no TST (Tribunal Superior do Trabalho), o ministro Guilherme Caputo pontuou que decisões judiciais de outros países não devem influenciar o judiciário brasileiro por serem criadas em "ordens jurídicas absolutamente distintas".
Veja a nota na íntegra:
O status de "worker" é uma classificação específica da legislação do Reino Unido. Os profissionais com esse status não são funcionários das empresas, mas têm acesso a certas proteções da sociedade britânica, como pagamento mínimo por hora e plano de pensão. A Uber anunciou que não vai recorrer da decisão da Suprema Corte que classificou um grupo de motoristas como "worker" e que vai estender essa classificação para todos os motoristas parceiros do Reino Unido.
No Brasil, em julgamento recente no TST (Tribunal Superior do Trabalho), o ministro Guilherme Caputo pontuou que decisões judiciais de outros países não devem influenciar o Judiciário brasileiro por serem criadas em "ordens jurídicas absolutamente distintas".
"Se a Suprema Corte do Reino Unido entendeu que motoristas não são trabalhadores autônomos, tampouco deveria ter repercussão porque é um sistema jurídico completamente diferente do nosso, não existe essa relação de emprego que nós temos aqui", afirmou, em relação ao julgamento que classificou um grupo de motoristas de Londres no status de "worker", figura que não existe na legislação brasileira.
Nos últimos anos, as diversas instâncias da Justiça do Trabalho brasileira vêm construindo sólida jurisprudência confirmando o fato de não haver relação de emprego entre a Uber e os motoristas parceiros, apontando a inexistência de onerosidade, habitualidade, pessoalidade e subordinação, requisitos que configurariam o vínculo empregatício. Em todo o país, já são mais de 800 decisões neste sentido.
No último dia 2 de março, pela terceira vez, o TST confirmou que não existe vínculo de emprego entre a Uber e os motoristas parceiros, considerando a "autonomia ampla do motorista para escolher dia, horário e forma de trabalhar, podendo desligar o aplicativo a qualquer momento e pelo tempo que entender necessário, sem nenhuma vinculação a metas determinadas pela Uber".
Entendimento semelhante já foi adotado em outros dois julgamentos do TST em 2020, em fevereiro e em setembro, e também pelo Superior Tribunal de Justiça em julgamento de 2019.
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