O que o Talibã faz com as mulheres? Por que o Talibã proíbe as mulheres de estudar? Saiba mais sobre o controle do Talibã no Afeganistão
A volta do Taliban ao poder no Afeganistão - com a tomada de Cabul, nesse domingo (15), sendo o golpe final de uma campanha militar fulminante - já alterou o modo de vida do povo afegão, especialmente das mulheres, que sentem com mais intensidade a realidade sombria que muitas delas pouco se lembram ou nem chegaram a conhecer
Atualizada em 18.08.2021 às 21h59
A volta do Talibã ao poder no Afeganistão - com a tomada de Cabul, nesse domingo (15), sendo o golpe final de uma campanha militar fulminante - já alterou o modo de vida do povo afegão, especialmente das mulheres, que sentem com mais intensidade a realidade sombria que muitas delas pouco se lembram ou nem chegaram a conhecer. Mas afinal, o que o Talibã faz com as mulheres e por que elas são proibidas de trabalhar?
Quando o grupo fundamentalista governou o país por cinco anos, entre 1996 e 2001, ficou proibida a educação de meninas e o trabalho feminino. Para sair de casa ou viajar, elas precisavam ser acompanhadas por um parente do sexo masculino, além de serem obrigadas a usar burca em público. Flagelações e execuções, incluindo apedrejamento por adultério, eram práticas comuns em praças e estádios da cidade.
Zarmina Kakar, uma ativista pelo direitos das mulheres em Cabul, tinha apenas um ano quando o Talibã chegou ao governo pela primeira vez, em 1996, mas recorda bem como a mãe foi chicoteada em público ao revelar o rosto por alguns minutos, ao comprar um sorvete para a filha.
"Eu sinto que somos como um pássaro que faz um ninho para viver e passa o tempo construindo-o, mas de repente e impotente vê os outros destruí-lo", disse Kakar, antes da tomada de Cabul pelos rebeldes. E completou: "Hoje, novamente, sinto que se o Talibã chegar ao poder, voltaremos aos mesmos dias sombrios", disse.
O temor do retorno ao regime Talibã pode ser notada desde antes da tomada do poder de fato pelo grupo. Quando o grupo ainda avançava sobre cidades em poder do governo, cerca de 250 mil afegãos fugiram em direção a Cabul, visto como último refúgio para muitos. De acordo com a agência da ONU para refugiados, 80% desse total eram mulheres ou crianças.
Relatos de pessoas que chegaram a Cabul antes do fim de semana confirmam que, mesmo antes de derrubar o governo, o Talibã começou a aterrorizar mulheres e meninas com ameaças de casamentos forçados, sequestro de mulheres e violência física em territórios já conquistados. Na semana passada, famílias da província de Takhar, que se deslocaram para Cabul em razão do avanço dos rebeldes, relataram que meninas que voltavam para casa em um riquixá motorizado foram detidas e chicoteadas por usarem "sandálias reveladoras".
Em Cabul, as mulheres já se preparavam para o possível desfecho catastrófico antes da chegada do Talebã. As vendas de burcas - vestimenta que cobre todo o corpo, deixando espaço apenas para os olhos - dispararam na capital, segundo relataram vendedores ao jornal britânico The Guardian. Uma mulher ouvida pelo jornal reclamou da alta nos preços da vestimenta: "No ano passado, essas mesmas burcas custavam 200 afeganes (cerca de R$ 13). Agora eles tentam nos vender por 2 mil ou 3 mil afeganes (entre R$ 130 e R$ 195)".
Apesar dos sinais da opressão já se materializarem na sociedade afegã, há quem diga que pretende resistir. Uma estudante universitária chamada Habiba, ouvida pela iniciativa local de comunicação feminina Rukhshana Media, disse que a mãe pediu que ela e suas duas irmãs usassem burcas antes da chegada do Talebã, na tentativa de protegê-la.
"Nós não temos nenhuma burca em casa e eu não tenho a intenção de comprar uma. Eu não quero me esconder atrás de uma roupa que parece uma cortina. Se eu vestir uma burca, isso significa que eu aceitei o governo do Talibã. Eu terei dado a eles o direito de me controlar. Vestir um chador [outro tipo de roupa típica islâmica que cobre todo o corpo da mulher, revelando apenas o rosto] é o começo da minha sentença como prisioneira na minha própria casa. Eu estou com medo de perder tudo pelo que tanto lutei", disse Habiba, na entrevista veiculada pelo The Guardian.
Em sua primeira noite sob o regime dos talibãs, Aisha Khurram, de 22 anos, não dormiu, em meio ao barulho de balas e aviões evacuando estrangeiros do aeroporto de Cabul, um dia que ela não esquecerá: "em que nossa alma e nosso espírito foram quebrados".
"Para toda a nação, ver como tudo desabou em um instante foi o fim do mundo", confessou esta estudante afegã à AFP na manhã de segunda-feira, poucas horas após a entrada do Talibã em Cabul.
Khurram, que representa a juventude afegã na ONU, deveria concluir seus estudos na Universidade de Cabul nos próximos meses. Mas, na manhã de domingo, ela e seus companheiros não puderam voltar ao campus e seu futuro é mais incerto do que nunca.
“O mundo e os líderes afegãos abandonaram a juventude do país da maneira mais cruel que podemos imaginar”, explica. "É um pesadelo para as mulheres que estudaram, que pensam em um amanhã melhor para si e para as gerações futuras".
Durante 1996 e 2001, o governo Talibã impôs uma visão ultraortodoxa da lei islâmica que impedia as mulheres de estudar ou trabalhar, sair de casa se não acompanhadas por um membro de sua família do sexo masculino e obrigá-las a usar a burca em público.
Flagelações e execuções, incluindo apedrejamento por adultério, eram práticas comuns em praças e estádios da cidade.
No entanto, a situação, especialmente nas áreas rurais, não melhorou substancialmente para as mulheres com a saída dos talibãs em 2001.
Medo
O Talibã afirmou repetidamente que respeitaria os direitos humanos se retornassem ao poder no Afeganistão, enfatizando os das mulheres, mas de acordo com os "valores islâmicos".
As afegãs, no entanto, veem essas promessas com desconfiança, especialmente aquelas que por duas décadas puderam ir para a universidade, ocuparam cargos de responsabilidade na política, no jornalismo e até mesmo no judiciário e nas agências de segurança pública.
Mulheres conhecidas em Cabul expressaram nas redes sociais sua tristeza por ver seu país e todas as suas vidas destruídas pelas mãos dos talibãs.
"Comecei o dia olhando para as ruas vazias de Cabul, horrorizada", escreve Fawzia Koofi, ativista de direitos humanos e ex-vice-presidente do Parlamento afegão. "A história se repete tão rápido".
"O medo está impresso em você, está aqui como um pássaro preto", acrescenta Muska Dastageer, professora da Universidade Americana do Afeganistão, inaugurada cinco anos após a saída do Talibã.
Apagar as mulheres
Em um post na conta do Twitter de Rada Akbar, uma mulher de 33 anos, vemos a imagem - já viral - de um homem cobrindo com tinta branca a foto em uma vitrine de uma mulher sorridente em um vestido de noiva.
Para Akbar, esse gesto mostra que eles buscam “apagar as mulheres do espaço público”, pois o Talibã não permite a reprodução de imagens de mulheres.
Rada Akbar, pintora e fotógrafa, é conhecida por seus retratos, uma reivindicação da independência e herança do Afeganistão. Este ano, teve que organizar sua exposição de homenagem a importantes mulheres afegãs online, depois de receber ameaças.
Na segunda-feira (16) de manhã, seu medo era palpável. "Quero me tornar invisível e me esconder do mundo", escreveu em um de seus últimos tweets.
No sábado (14), o secretário-geral das Nações Unidas, Antonio Guterres, disse que ficou "horrorizado" ao "ver como desaparecem os direitos tão duramente conquistados pelas meninas e mulheres do Afeganistão".
Sahraa Karimi, uma das cineastas afegãs mais famosas, disse que não tinha intenção de deixar o Afeganistão. “Não abandonarei meu país”, declarou, enxugando as lágrimas em um vídeo postado no Twitter.
Financiamento e direitos humanos
O professor João Correia, que participou do programa Passando a Limpo, da Rádio Jornal, nesta quarta-feira (18), explicou dois pontos importantes a respeito do Talibã. O primeiro é a mudança de discurso, falando de direitos humanos. O outro é o financiamento do movimento. Veja, abaixo, vídeos e a transcrição da entrevista:
Dá pra acreditar nesse discurso vindo de um grupo que já promoveu tantas atrocidades?
Ontem, porta-voz do Talibã convocou a primeira coletiva de imprensa do grupo e trouxe algumas situações importantes. Eu já esperava que nesse primeiro o Talibã, que na verdade é uma milícia, com práticas medievais e que deturpa boa parte do islamismo. Mas eu já esperava uma postura pragmática, mais diplomática. É importante dizer que, na sua primeira fala, o porta voz do grupo pediu que o povo entendesse que nos últimos 20 anos o grupo amadureceu, evoluiu em várias questões e particularmente no âmbito das mulheres, e afirmaram querer a participação delas no dia a dia. E eles estão dando uma série de gestos. Um exemplo é que ontem a âncora do programa foi incentivada a apresentar, e ela estava com o rosto completamente a vista. O que percebo é que, nesse primeiro momento, o Talibã tenta passar uma tranquilidade. A gente percebe que desde 4 de maio o grupo vem avançando, à medida que as tropas americanas vão deixando o país, o que já era uma promessa relativamente antiga. É a guerra mais longa travada pelos Estados Unidos, com investimento maior do que o PIB do próprio Afeganistão nos últimos 20 anos.
Os vídeos que recebemos e vimos na TV e na internet nos últimos dias mostram as pessoas apavoradas. Pessoas que quando souberam que o Talibã chegou nas suas cidades, começaram a fugir. São pessoas que tem aquela lembrança tortuosa e nefasta dos anos 1996 a 2001, exatamente o período em que o Afeganistão foi governado pelo Talibã. O Talibã chega ao poder em 1996, governa até 2001. Chegou ao poder após derrubar um presidente de características comunista e foi uma grande ruptura naquele contexto. Meninas foram proibidas de estudar, mulheres proibidas de sair de casa sem seus maridos. Tudo isso, apesar de ter acontecido na década de 90, é uma lembrança muito próxima, muito recente. Jovens com 20, 15, 16 anos, que não vivenciaram o governo Talibã também tem medo porque ouviram dos pais, dos avós, que o Talibã é um grupo extremista, radical e que não tem nenhuma tolerante.
Acredito que o Talibã precise agora organizar o âmbito interno do governo do Afeganistão. Recebi relatos que em algumas cidades a população está se revoltando contra o grupo porque não quer que a bandeira do Afeganistão seja substituída. Já que um dos primeiros pontos do Talibã é mudar o nome do país de 'República' para 'Emirado', que é uma mudança simbólica, e também mudar a bandeira do Afeganistão pela bandeira do Talibã.
Acredito que o Talibã busca um reconhecimento internacional. Se eles conseguem o reconhecimento da China e da Rússia, que tem economia forte e potência militar, respectivamente. O grupo sabe que não vai sobreviver de maneira isolada. O Afeganistão é um país pobre, com 30 milhões de habitantes e um Índice de Desenvolvimento Humano abaixo de 5. O país vive uma seca severa, passa pela fome, pela falta de alimentos. É um verdadeiro barril de pólvora. E além disso a gente vivencia uma pandemia.
A gente acredita que nesse primeiro momento o discurso deles é pragmático, vão querer passar uma imagem mais positiva do grupo. Mas vamos pensar no médio e no longo prazo. O Talibã tem uma série de facções internas. Algumas mais moderadas e outras mais radicais. Na minha percepção, as mulheres não terão um vida fácil durante o regime Talibã e já há indícios de escolas queimadas. O Afeganistão é grande. Na capital, onde fica a imprensa, onde as coisas acontecem, eles podem criar um teatro. Mostrar mulheres nas escolas, nas Universidades, trabalhando. Mas a preocupação é com as áreas do interior, com as pequenas cidades, onde o Talibã é mais forte e foi forjado. Eu vejo isso com muita preocupação.
Um colega Unissef disse que estava otimista porque ouviu de algumas lideranças do Talibã que o tratamento com as mulheres vai ser muito diferente do que aconteceu entre 1996 e 2001. Mas ainda assim vejo tudo isso com muita preocupação.
O Talibã tem dinheiro em caixa?
O Talibã nos últimos 5 anos conseguiu quadruplicar sua capacidade de arrecadação. A gente sabe que o Afeganistão tem uma das maiores produções de ópio do mundo e a gente sabe também que o ópio movimenta toda uma indústria de drogas. O Talibã tinha como uma de suas principais fontes de arrecadação de dinheiro o 'dízimo', eles cobravam uma espécie de propina de toda produção de diversas cidades do Afeganistão. Na verdade eles controlavam essa produção do ópio desde a origem, na produção agrícola, até o fim. O grupo, segundo divulgação da Forbes em 2016, está no Top 5 dos grupos considerados mais articulados do ponto de vista financeiro. Eles interferem também em minas de cobre e outros minerais.
Um ponto interessante é que a China tem muitos projetos de Infraestrutura no Afeganistão e eu nunca soube de nenhuma obra da China sofrendo algum ataque terrorista, por outro lado, a Índia tem projetos de infraestrutura dentro do Afeganistão e vários projetos foram atacados nos últimos anos.
Dizem que os americanos treinarem 300 mil soldados afegãos e que armaram e que essas armas estão ficando para trás. É importante salientar que 300 mil soldados é um número superestimado, você não tem 300 mil soldados afegãos. Muitos sequer recebiam salários e tinham dinheiro para comer. Resultado: alguns deles inclusive pegavam as armas que recebiam e vendiam em mercado paralelo. Tanto que o próprio Talibã está preocupado em recolher as armas da população para ele ter o controle total militar.
O Afeganistão tem muitas facções. Além do Talibã, que tem facções internas, dentro do Afeganistão existem outros grupos guerrilheiros que vão disputar. Existe um risco do Afeganistão virar uma Líbia. A Líbia, depois da primavera árabe virou um caos.
O Talibã nesse momento tenta se organizar para tirar essa oposição interna e tentar seguir adiante. Agora vejam bem, eu tinha um correspondente, que é um soldado americano que trabalhava na embaixada. A embaixada americana foi transferido para o aeroporto por uma questão de segurança. Ele mandou uma foto pra mim e disse 'nessa foto tem 50 mil dólares em equipamento', depois ele me mostrou algumas antenas e disse que iria destruir essas antenas que custam, em média 300 mil dólares. Aí eu perguntei porque ele ia destruir e ele disse que ia destruir porque eles não poderiam deixar uma tecnologia como aquela nas mãos do Talibã.
Mas para ser sincero, o Talibã não vai precisar da tecnologia dos Estados Unidos. Se o Talibã conseguir conquistar a confiança do governo chinês, que também não é fácil. A gente sabe que a China tem um histórico de problema com os muçulmanos no Noroeste. Mas se o Talibã consegue convencer a China que vai gerar estabilidade e vai trabalhar em parceria com os chineses, a própria China pode fazer transferência de tecnologia militar. Agora de fato, muitas armas, carros, posses em geral dos Estados Unidos foram deixadas para trás.
Vi uma notícia que saiu agora, do governo americano dizendo que bloqueou 9,5 bilhões de dólares do governo afegão distribuído em bancos e tesouros nacionais. A União Europeia caminha para esse passo também, para que o dinheiro do governo afegão não seja usado pelo Talibã.
Ontem, Franco Mackenzie, um dos importantes nomes do exército americano no oriente médio, disse que espera enxergar no Talibã, além de palavras, ações. Ele disse que quer sentir que o Talibã de hoje não é o Talibã de antigamente.
Os Estados Unidos querem evacuar 7 mil pessoas por dia. Eu acho muito, até porque, para onde vão? Tem 20 mil afegãos em volta do aeroporto que trabalharam para os Estados Unidos e estão com medo de morrer, mas para onde é que eles vão? Vão para bases americanas? Há essa expetativa, mas o que foi que Franco Mackenzie disse? Que se o Talibã atrapalhar essa evacuação, os Estados Unidos vai esmagar o grupo. E isso significa entrar em mais uma guerra, para mais 30 ou 50 anos, num problema sem fim.
No Afeganistão tem muita arma sim, muita tecnologia, mas o que penso que vai ditar agora é o posicionamento da China, e, por fim, temos que levar em conta que o Afeganistão é importante para China, porque a China quer escoar sua produção industrial que é gigante. O Afeganistão fica bem na Ásia central e faz fronteira com várias países, sendo uma região estratégica.