O mundo inteiro está com os olhos voltados ao Afeganistão desde que o Talibã tomou o país no último sábado (15). Para explicar um pouco sobre o que está acontecendo na região, o geógrafo João Correia, que já teve passagem pelo Oriente Médio, concedeu entrevista ao Passando a Limpo, da Rádio Jornal, na manhã desta quarta-feira (18). Durante a conversa, o estudioso revelou que, na sua visão, o grupo tem tentado aderir à uma prática mais diplomática.
"É importante dizer que, na sua primeira fala, o porta voz do grupo pediu que o povo entendesse que nos últimos 20 anos o grupo amadureceu, evoluiu em várias questões e particularmente no âmbito das mulheres, e afirmaram querer a participação delas no dia a dia. O que percebo é que, nesse primeiro momento, o Talibã tenta passar uma tranquilidade", disse João Correia.
Apesar disso, desde que o grupo tomou o poder, milhares afegãos e, principalmente afegãs, temem os próximos passos do grupo e, por isso, buscam incansavelmente sair do país. "O Talibã é uma milícia com práticas medievais e deturpa boa parte do islamismo. Os vídeos que recebemos e vimos na TV e na internet nos últimos dias mostram as pessoas apavoradas. Pessoas que quando souberam que o Talibã chegou nas suas cidades, começaram a fugir. São pessoas que tem aquela lembrança tortuosa do período em que o Afeganistão foi governado pelo Talibã e também são pessoas que, apesar de não terem passado por essa época, ouviram os relatos dos pais e avós", explicou João Correia.
O Talibã governou o Afeganistão entre 1996 e 2001 e é conhecido pelo tratamento extremamente rígido com as mulheres, que não podiam trabalhar, estudar, sair sem a companhia de um homem e eram obrigadas a usar a burca. A atitude do grupo, porém, parece estar sendo mais pragmática em relação à isso. Um exemplo disso é que, na terça (17), o principal canal de notícias do país foi apresentado por uma mulher. "A âncora do programa foi incentivada a apresentar, e ela estava com o rosto completamente a vista", completou o geógrafo.
O gesto foi reiterado através de declarações emitidas pelo próprio Talibã. De acordo com Rupert Colville, porta-voz da Alta Comissária da ONU para os Direitos Humanos, o Talibã afirmou que as mulheres poderiam trabalhar e as meninas irem à escola. "Essas promessas vão precisar ser honradas. Mas dada a história passada - essas declarações foram recebidas com algum ceticismo", afirmou Rupert em declaração.
Para João Correia, as promessas do Talibã também devem ser vistas com um certo "pé atrás". "A gente acredita que nesse primeiro momento o discurso deles é pragmático, vão querer passar uma imagem mais positiva do grupo. Mas vamos pensar no médio e no longo prazo. O Talibã tem uma série de facções internas. Algumas mais moderadas e outras mais radicais. Na minha percepção, as mulheres não terão um vida fácil durante o regime Talibã", disse.
Ainda segundo ele, a preocupação maior é com as cidades mais afastadas da capital, onde o grupo é ainda mais forte e radical. "O Afeganistão é grande. Na capital, onde fica a imprensa, onde as coisas acontecem, eles podem criar um teatro. Mostrar mulheres nas escolas, nas Universidades, trabalhando. Mas a preocupação é com as áreas do interior, com as pequenas cidades, onde o Talibã é mais forte e foi forjado. Eu vejo isso com muita preocupação".
Agora, o objetivo do Talibã parece claro. De acordo com o geógrafo, o grupo busca reconhecimento internacional, e apoio, pois já sabe que não vai conseguir sobreviver de maneira isolada, tendo em vista que o Afeganistão é um país pobre, com 30 milhões de habitantes e um Índice de Desenvolvimento Humano abaixo de 5.
"O país vive uma seca severa, passa pela fome, pela falta de alimentos. É um verdadeiro barril de pólvora. E além disso a gente vivencia uma pandemia. Eu acredito que o Talibã vai buscar um reconhecimento internacional, tentar conseguir reconhecimento da China e da Rússia, que tem economia forte e potência militar, respectivamente", completou João Correia.
Ouça a íntegra da entrevista:
Leia a transcrição da entrevista na íntegra:
Dá pra acreditar nesse discurso vindo de um grupo que já promoveu tantas atrocidades?
Ontem, porta-voz do Talibã convocou a primeira coletiva de imprensa do grupo e trouxe algumas situações importantes. Eu já esperava que nesse primeiro o Talibã, que na verdade é uma milícia, com práticas medievais e que deturpa boa parte do islamismo. Mas eu já esperava uma postura pragmática, mais diplomática. É importante dizer que, na sua primeira fala, o porta voz do grupo pediu que o povo entendesse que nos últimos 20 anos o grupo amadureceu, evoluiu em várias questões e particularmente no âmbito das mulheres, e afirmaram querer a participação delas no dia a dia. E eles estão dando uma série de gestos. Um exemplo é que ontem a âncora do programa foi incentivada a apresentar, e ela estava com o rosto completamente a vista. O que percebo é que, nesse primeiro momento, o Talibã tenta passar uma tranquilidade. A gente percebe que desde 4 de maio o grupo vem avançando, à medida que as tropas americanas vão deixando o país, o que já era uma promessa relativamente antiga. É a guerra mais longa travada pelos Estados Unidos, com investimento maior do que o PIB do próprio Afeganistão nos últimos 20 anos.
Os vídeos que recebemos e vimos na TV e na internet nos últimos dias mostram as pessoas apavoradas. Pessoas que quando souberam que o Talibã chegou nas suas cidades, começaram a fugir. São pessoas que tem aquela lembrança tortuosa e nefasta dos anos 1996 a 2001, exatamente o período em que o Afeganistão foi governado pelo Talibã. O Talibã chega ao poder em 1996, governa até 2001. Chegou ao poder após derrubar um presidente de características comunista e foi uma grande ruptura naquele contexto. Meninas foram proibidas de estudar, mulheres proibidas de sair de casa sem seus maridos. Tudo isso, apesar de ter acontecido na década de 90, é uma lembrança muito próxima, muito recente. Jovens com 20, 15, 16 anos, que não vivenciaram o governo Talibã também tem medo porque ouviram dos pais, dos avós, que o Talibã é um grupo extremista, radical e que não tem nenhuma tolerante.
Acredito que o Talibã precise agora organizar o âmbito interno do governo do Afeganistão. Recebi relatos que em algumas cidades a população está se revoltando contra o grupo porque não quer que a bandeira do Afeganistão seja substituída. Já que um dos primeiros pontos do Talibã é mudar o nome do país de 'República' para 'Emirado', que é uma mudança simbólica, e também mudar a bandeira do Afeganistão pela bandeira do Talibã.
Acredito que o Talibã busca um reconhecimento internacional. Se eles conseguem o reconhecimento da China e da Rússia, que tem economia forte e potência militar, respectivamente. O grupo sabe que não vai sobreviver de maneira isolada. O Afeganistão é um país pobre, com 30 milhões de habitantes e um Índice de Desenvolvimento Humano abaixo de 5. O país vive uma seca severa, passa pela fome, pela falta de alimentos. É um verdadeiro barril de pólvora. E além disso a gente vivencia uma pandemia.
A gente acredita que nesse primeiro momento o discurso deles é pragmático, vão querer passar uma imagem mais positiva do grupo. Mas vamos pensar no médio e no longo prazo. O Talibã tem uma série de facções internas. Algumas mais moderadas e outras mais radicais. Na minha percepção, as mulheres não terão um vida fácil durante o regime Talibã e já há indícios de escolas queimadas. O Afeganistão é grande. Na capital, onde fica a imprensa, onde as coisas acontecem, eles podem criar um teatro. Mostrar mulheres nas escolas, nas Universidades, trabalhando. Mas a preocupação é com as áreas do interior, com as pequenas cidades, onde o Talibã é mais forte e foi forjado. Eu vejo isso com muita preocupação.
Um colega Unissef disse que estava otimista porque ouviu de algumas lideranças do Talibã que o tratamento com as mulheres vai ser muito diferente do que aconteceu entre 1996 e 2001. Mas ainda assim vejo tudo isso com muita preocupação.
O Talibã tem dinheiro em caixa?
O Talibã nos últimos 5 anos conseguiu quadruplicar sua capacidade de arrecadação. A gente sabe que o Afeganistão tem uma das maiores produções de ópio do mundo e a gente sabe também que o ópio movimenta toda uma indústria de drogas. O Talibã tinha como uma de suas principais fontes de arrecadação de dinheiro o 'dízimo', eles cobravam uma espécie de propina de toda produção de diversas cidades do Afeganistão. Na verdade eles controlavam essa produção do ópio desde a origem, na produção agrícola, até o fim. O grupo, segundo divulgação da Forbes em 2016, está no Top 5 dos grupos considerados mais articulados do ponto de vista financeiro. Eles interferem também em minas de cobre e outros minerais.
Um ponto interessante é que a China tem muitos projetos de Infraestrutura no Afeganistão e eu nunca soube de nenhuma obra da China sofrendo algum ataque terrorista, por outro lado, a Índia tem projetos de infraestrutura dentro do Afeganistão e vários projetos foram atacados nos últimos anos.
Dizem que os americanos treinarem 300 mil soldados afegãos e que armaram e que essas armas estão ficando para trás. É importante salientar que 300 mil soldados é um número superestimado, você não tem 300 mil soldados afegãos. Muitos sequer recebiam salários e tinham dinheiro para comer. Resultado: alguns deles inclusive pegavam as armas que recebiam e vendiam em mercado paralelo. Tanto que o próprio Talibã está preocupado em recolher as armas da população para ele ter o controle total militar.
O Afeganistão tem muitas facções. Além do Talibã, que tem facções internas, dentro do Afeganistão existem outros grupos guerrilheiros que vão disputar. Existe um risco do Afeganistão virar uma Líbia. A Líbia, depois da primavera árabe virou um caos.
O Talibã nesse momento tenta se organizar para tirar essa oposição interna e tentar seguir adiante. Agora vejam bem, eu tinha um correspondente, que é um soldado americano que trabalhava na embaixada. A embaixada americana foi transferido para o aeroporto por uma questão de segurança. Ele mandou uma foto pra mim e disse 'nessa foto tem 50 mil dólares em equipamento', depois ele me mostrou algumas antenas e disse que iria destruir essas antenas que custam, em média 300 mil dólares. Aí eu perguntei porque ele ia destruir e ele disse que ia destruir porque eles não poderiam deixar uma tecnologia como aquela nas mãos do Talibã.
Mas para ser sincero, o Talibã não vai precisar da tecnologia dos Estados Unidos. Se o Talibã conseguir conquistar a confiança do governo chinês, que também não é fácil. A gente sabe que a China tem um histórico de problema com os muçulmanos no Noroeste. Mas se o Talibã consegue convencer a China que vai gerar estabilidade e vai trabalhar em parceria com os chineses, a própria China pode fazer transferência de tecnologia militar. Agora de fato, muitas armas, carros, posses em geral dos Estados Unidos foram deixadas para trás.
Vi uma notícia que saiu agora, do governo americano dizendo que bloqueou 9,5 bilhões de dólares do governo afegão distribuído em bancos e tesouros nacionais. A União Europeia caminha para esse passo também, para que o dinheiro do governo afegão não seja usado pelo Talibã.
Ontem, Franco Mackenzie, um dos importantes nomes do exército americano no oriente médio, disse que espera enxergar no Talibã, além de palavras, ações. Ele disse que quer sentir que o Talibã de hoje não é o Talibã de antigamente.
Os Estados Unidos querem evacuar 7 mil pessoas por dia. Eu acho muito, até porque, para onde vão? Tem 20 mil afegãos em volta do aeroporto que trabalharam para os Estados Unidos e estão com medo de morrer, mas para onde é que eles vão? Vão para bases americanas? Há essa expetativa, mas o que foi que Franco Mackenzie disse? Que se o Talibã atrapalhar essa evacuação, os Estados Unidos vai esmagar o grupo. E isso significa entrar em mais uma guerra, para mais 30 ou 50 anos, num problema sem fim.
No Afeganistão tem muita arma sim, muita tecnologia, mas o que penso que vai ditar agora é o posicionamento da China, e, por fim, temos que levar em conta que o Afeganistão é importante para China, porque a China quer escoar sua produção industrial que é gigante. O Afeganistão fica bem na Ásia central e faz fronteira com várias países, sendo uma região estratégica.
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