Entrevista

Guerra Rússia x Ucrânia: ''É preciso analisar sem torcida, não há mocinhos e bandidos'', diz coronel da reserva

Comunicação como ferramenta de guerra, interesses geopolíticos e posição do Brasil foram temas foram abordados pelo coronel em entrevista à Rádio Jornal

JC
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Publicado em 02/03/2022 às 12:51 | Atualizado em 03/03/2022 às 12:25
SERGEY BOBOK/AFP
Rússia e Ucrânia travam uma batalha que tem afetados diversos civis - FOTO: SERGEY BOBOK/AFP
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Marcelo Pimentel Jorge de Souza, mestre em Ciências Militares pela Eceme (Escola de Comando e Estado-Maior do Exército) e oficial da reserva do Exército concedeu entrevista à Rádio Jornal e analisou o conflito entre Rússia e Ucrânia, que chegou ao sétimo dia nesta quarta-feira (2). Comunicação e tecnologia como ferramentas de guerra, interesses geopolíticos, posição do Brasil em relação à guerra e outros temas foram abordados pelo coronel.

Confira alguns trechos da entrevista:

A guerra

A guerra é uma tragédia humana, é o inverso lógico e prático da paz, não se comemora, só se lamenta, e esse conflito que nós observamos agora, através da sua variável militar predominante, é um conflito amplo, tanto em espaços geográficos, quanto na quantidade de atores envolvidos, que não se resume a Rússia e Ucrânia, como pode parecer, e o próprio tempo, pois ele se origina no término da União Soviética e do re-equacionamento geopolítico de suas ex-repúblicas constituintes. Então, é assim que tem que se abordar o conflito.

Objetivos da Rússia

É preciso definir em qualquer conflito qual é o objetivo político, pois é esse objetivo que definirá os objetivos militares e, em consequência, a estratégia adotada para conquistar esses objetivos. Me parece que o objetivo político da Rússia seja a derrubada do governo da Ucrânia, para a obtenção de um governo diferente do atual, que é pró-ocidente, pró-Otan e anti-Rússia, por um, pelo menos, neutro e pró-Rússia, como costuma acontecer em relação às potências centrais em suas ações militares, isso tanto pelo lado dos Estados Unidos como pela própria Rússia. Me parece que a ação estratégica russa é ofensiva, isso é inegável, com o rompimento da soberania da Ucrânia, e está atuando em grandes frentes tanto no vetor terrestre, tanto no vetor aéreo e no vetor naval, de modo a controlar os centros urbanos, que não significa conquistar e ocupar. A obtenção desse controle sobre os centros urbanos permitiria iniciar ou continuar essas negociações referentes à origem desse conflito em situações mais vantajosas das que haviam antes da ação militar.

O que os russos buscam ocupando cidades?

REPRODUÇÃO/INSTAGRAM
Coronel Marcelo Pimentel - REPRODUÇÃO/INSTAGRAM

Analisar qualquer conflito é atentar aos objetivos. Se o objetivo militar russo é iniciar as negociações de paz com área militar conquistada, o controle sobre os centros políticos, Kiev, Kharkiv e ao sul, a partir da Crimeia, sem esquecer Donbas, mais a leste, mostram que forças russas entraram no território ucraniano e iniciaram a neutralização das forças armadas da Ucrânia como força organizada, demonstra um certo exaurimento das forças de defesa da Ucrânia. Mas, apesar do avanço russo sobre o território ucraniano, vemos a mancha com área que estaria ocupada e isso não significa que esteja compacta, sem força ucraniana atuando sobre comboio ou cadeia de suprimento para conter o ímpeto ofensivo russo.

Ucrânia

A estratégia da Ucrânia, que é defensiva, conta com fator apoio da opinião pública, ela é o estado agredido, o presidente está utilizando ferramentas de mídia e ele usa muito bem, a chegada ao poder em 2016 se deve ao fenômeno parecido com o do Brasil em 2018, com largo emprego de mídias como formadora da opinião pública à par da imprensa oficial, tradicional, e tem diminuído o tempo para que a Ucrânia alcance objetivos militares e inicie as negociações do cessar fogo.

Fontes de informação

O militar participa de um conflito ou lutando a guerra ou, como no meu caso e certamente do Ministério da Defesa do Brasil, que tem quadros muito competentes para isso, estudando a guerra, como ciência política, como ciência militar, principalmente. Observo esse conflito, além do aspecto da ciência militar, sobre o papel da ONU, última instância da resolução dos conflitos, e o papel da própria imprensa na reportagem sobre os fatos da guerra. E me preocupa que as fontes de informação que estamos utilizando para fazer nossos julgamentos, sob qualquer ótica, se baseiam na imprensa oriunda de um dos atores envolvidos nesse conflito, que é exatamente os Estados Unidos. Então, temos que ter muita cautela ao abordar essas fontes de informação para dar opiniões.

EUA

Considero os Estados Unidos como parte do conflito, uma das motivações, não é a única, pois há questões étnicas, históricas, numa área de fricção entre poderes, culturas, civilizações, antiga, que coloca a Otan, patrocinada pelos Estados Unidos no seu movimento de expansão, até lenta, para áreas de interesse estratégico russo.

Comunicação

A imprensa, ao reportar fatos de guerra, pode ser utilizada não como a própria arma, mas como ferramenta de construção de narrativa que interessa aos componentes do conflito. Há a comunicação online, fenômeno de guerra da quarta geração, guerra híbrida, em que o smartphone está disponível ao combatente na ponta da linha, ao piloto do carro de combate, ao tripulante da embarcação. Então, além da imprensa, essa comunicação global e caótica, no sentido amplo, é fator a ser observado pela ciência militar e foi considerado pelos setores militares que usam a informação como arma de guerra para desinformar, iludir, enganar e dissimular seu oponente.

ONU

A estratégia é ofensiva, é evidente, a Rússia assumiu papel na ação militar de agressor e deve desencadear operação militar rápida e de modo a obter surpresa, e isso foi planejado com antecedência e com conexões políticas da Rússia tanto a China, com países do Brics, Estados Unidos, as negociações não cessam na guerra, continuam em nível menos visível, o papel da ONU é relevante e fico preocupado com relação à ONU. Ela é a última instancia de diálogo e formação de consenso, a atitude de representantes dos países ocidentais que se retiraram no momento em que chanceler russo se dirigia a falar. Então, quando se nega o último recurso de diálogo desta forma, simbolicamente, é muito preocupante.

Brasil

O Brasil, diferentemente da maioria dos países ocidentais, permaneceu ouvindo o chanceler russo, uma das partes em conflito, e acredito que seja atitude coerente com a tradição diplomática do País e da expectativa de projeção do poder brasileiro no conselho das nações. A rede de informações de conexão das forças está em diversos países e o Brasil tem na Rússia, na Turquia, na China, em outros países, fazendo parte e essa cadeia de informação funciona a toda, fornecendo aos decisores da política de estado informações que amparam os posicionamentos em relação ao conflito. Reitero, a posição da diplomacia tem sido coerente, na ONU acompanhou no conselho segurança os onze que condenaram a invasão, mas no diálogo multilateral, é o 'B' do Brics, tem postura adequada de relações históricas comerciais com países da Europa, Estados Unidos, China e não pode ter postura muito além da capacidade militar de opinar, não somos potência nuclear, somos potência regional limitada. É necessário cautela, em algum momento países podem se apresentar para mediar negociações e eles precisam ser vistos com alguma neutralidade.

Interesses

É difícil prever o imponderável, dizer que povo está unido em torno do presidente (Volodymyr Zelensky) em luta organizada contra invasor, não me sinto à vontade para afirmar isso. Tanto atores com relação à Otan, ao mundo ocidental, e própria Rússia, usam vulnerabilidades da construção do estado ucraniano, que é recente em relação a culturas, etnias, aspectos psicossociais, históricos, idiomas, para explorar de forma atender os interesses.

Sem mocinhos

É preciso analisar sem torcida, não há mocinhos e bandidos, heróis e vilões. É preciso analisar a geopolítica ampla e o pano de fundo são os movimentos opostos dos dois eixos de poder: o ocidental, que está em movimento lento de regressão, tentando evitar a ascensão de outro eixo centrado Ásia, China, Rússia, e está em ascensão.

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