Causou um misto de estranheza e perplexidade a República Islâmica do Irã ter se tornado presidente do Fórum Social do Conselho dos Direitos Humanos da ONU. O regime de Teerã é acusado de violar sistematicamente os direitos humanos tendo, inclusive, o seu código penal prevendo punições como amputamento, flagelação e apedrejamento. Mehrdad e Farid Mohammadi foram, no final de janeiro de 2022, condenados por sodomia no Irã e terminaram sendo executados após passarem seis anos no corredor da morte. As informações são do grupo de Ativistas pelos Direitos Humanos no Irã (HRAI, na sigla em inglês), que também comunicou que os dois foram enforcados na cidade de Maragheh. Duas mulheres lésbicas, Zahra Sedighi-Hamadani e Elham Choubar, foram acusadas do crime de “corrupção na terra”. Apesar da pena de morte ter sido suspensa, ainda não se sabe ao certo o destino das duas. Armita Garawand teve morte cerebral após apanhar da polícia da moralidade por não usar o véu. Esse caso aconteceu pouco tempo depois de outra mulher, a Mahsa Amini, ter falecido em custódia da polícia pelo mesmo motivo da adolescente.
Apenas 30% dos membros do Conselho de Direitos Humanos da ONU são democracias. Devido a essa distorção da representação, o Estado de Israel é o recordista de condenações com 37% do total. Esse país foi condenado mais vezes que o Afeganistão dos Talibãs, a Coreia do Norte de Kim Jong-un, a Síria de Bashar al-Assad e a Arábia Saudita de Mohammed Bin-Salman. Atualmente, os holofotes estão direcionados para a guerra entre Israel e Hamas, enquanto Tel Aviv recebe críticas por sua atuação militar na Faixa de Gaza, ao mesmo tempo em que o grupo terrorista chegou a atirar em pessoas que buscavam sair de uma zona à outra. Outros conflitos ao redor do mundo, com flagrantes violações aos direitos humanos passarão, infelizmente, despercebidos. A guerra na Etiópia entre o governo e os rebeldes do Tigré irrompeu antes da guerra Russo-Ucraniana e deixou mais de 500 mil mortos. Apesar de ser considerada um dos piores desastres humanitários do mundo, a guerra, que se arrasta por 6 anos, teve pouca atenção, em que os seus autores tiveram “liberdade” para cometer crimes contra a humanidade.
As imagens de imigração forçada da população armênia da região de Nagorno-Karabakh, após o novo ataque do Azerbaijão, parecem não ter gerado comoção. Esse evento, mesmo sendo claramente um movimento de limpeza étnica provido pelo governo de Baku, nem de longe trouxe a mídia do conflito no Oriente Médio. A Armênia, sem aliados poderosos e sem poder militar para reagir, não teve opção a não ser reconhecer a derrota. As sombras de um novo genocídio, como ocorreu em 1915, pelo Império Turco-Otomano, trouxe medo e preocupação que poderia se repetir no futuro próximo. Em 2021 o exército derrubou o governo eleito de Mianmar. Desde então, brutais repressões têm ocorrido naquele país asiático.
O capitão Zay Thu Aung, piloto da força aérea por 18 anos, denunciou que os militares do país deram ordens para bombardear vilarejos. Apoiada pela Rússia, com o fornecimento de caças modernos, os militares de Mianmar continuam bombardeando civis sem receber condenações internacionais por isso.
Os conflitos e guerras acima descritos tendem a receber pouca atenção do público. Nem se verá grandes manifestações pedindo pausas ou coisas do tipo. O que explica isso? Provavelmente porque não gerem as narrativas ou indignações do ponto de vista ideológico. Luis Wenus, em post no X de 10 de outubro, mostrou que conseguiu extrair dados dessa rede social sobre as posições políticas das pessoas com base na Guerra Russo-Ucraniana e de Israel contra o Hamas. Os apoiadores da Rússia-Palestina, na extrema esquerda, são simpatizantes da era soviética e amam a resistência ao estilo de guerrilha. No campo Ucrânia-Palestina, é onde está a esquerda liberal clássica, que se preocupam com a opressão. Para os defensores da Ucrânia e Israel, é onde estão os centristas preocupados com o triunfo da democracia e da civilização ocidental com seus valores. Apoiadores da Rússia-Israel tendem a ser parte da direita, assim como a maioria dos trumpistas. No extremo, está o campo Rússia-Palestina: odeiam a civilização ocidental, não gostam da agenda woke (sobre estar consciente de temas sociais e políticos), ou temas semelhantes, e são racistas antissemitas (apesar que não se declararem assim); por eliminação, defendem a Palestina.
As posições políticas elencadas no parágrafo anterior dão uma luz porque alguns grupos condenam Israel, mas não criticam os crimes de guerra perpetrados pelos russos. Lançar mísseis de 12 milhões de dólares, como os Kinzhal, contra silos de grãos na Ucrânia não gera indignação pelas ações de gerar fome perpetradas por Vladimir Putin. A cegueira ideológica, ao obscurecer a visão crítica, cria um terreno fértil para a relativização de crimes cometidos por indivíduos alinhados a determinada ideologia. A lealdade à ideia muitas vezes se sobrepõe à avaliação ética dos atos perpetrados por membros do grupo ideológico. Buscar artifícios retóricos, como legitimar a invasão da Ucrânia por meio do falso argumento de “desnazificação”, é só mais um exemplo da manifestação de uma cegueira seletiva, onde a fidelidade ideológica prevalece sobre princípios éticos universais. Essa dinâmica resulta em uma perigosa tolerância ou negação dos delitos, prejudicando a busca por justiça e a responsabilização individual. As vozes sobre os ataques de Israel serão maiores do que as condenações dos crimes de guerra ou atos terroristas do Hamas. E os africanos, asiáticos e armênios, fora da política de poder e sem narrativas que os ajudem, ficam relegados à invisibilidade internacional.
Antonio Henrique Lucena Silva, Doutor em Ciência Política (UFF)