A leitura obrigatória e prazerosa de Ruy Castro (Folha 28/01/23) destaca um "gênero" literário, em voga nos idos de 1964, de "tratados 'eruditos'" sobre temas irrelevantes e vice-versa, com citações em latim, prefácios de gente séria e crítica feroz de tudo.
Entre eles, "O Puxa-Saquismo ao alcance de todos" de autoria do brilhante conterrâneo de Vitória de Santo Antão, Nestor de Hollanda Cavalcanti (1921-1970). Versátil e criativo intelectual, jornalista, escritor, produtor de rádio, TV, compositor cujo filho homônimo, Nestor, é autor de vasta produção musical, internacionalmente consagrada.
Recorri à Estante Virtual. Adquiri um raro sobrevivente a quem dedico merecidos cuidados em recompensa à leitura divertida, atual e que deixa lição incontornável: "Quem nunca deu uma 'puxadinha' que atire a primeira pedra".
Mais que irreverente, o humor é cáustico, demolidor. Nestor teoriza: a adulação é instintual, imemorial e universal. A abrangência alcança três tipos principiais de puxa-sacos: bissextos, fanáticos, Ex-ofícios e descreve subtipos de enorme variedade. Existem puxa-sacos bíblicos, santos, animais, mitos (Papai-Noel) e, apesar da tentativa de abrandar a expressão chula com sinônimos, a exemplo de subserviente, lisonjeador, louvaminheiro, áulico, "chaleira", xeleléu, bajulador, prevaleceu a origem etimológica latina saccus que "chegou ao luso-brasileiro com a clássica denominação - diz Nestor - de 'estojo de órgãos glandulares'".
Mas é no ambiente político em que aflora a multidão dos "babãos". Nestor de Holanda dá nome e sobrenome às personalidades marcantes da vida pública entre 1930 e 1960. Comunista de carteirinha, detona todos, em especial Carlos Lacerda, mas fiel a princípio afirma: "Claro que em qualquer regime, aquém ou além da 'Cortina de ferro´, funcionam os puxa-sacos".
A qualidade e a profundidade do texto podem se transformar no marco fundador de nova ciência social: a puxassacologia. Aplicado e respondido, o "questionário da puxação" (100 perguntas no final do livro), o leitor, dependendo do desempenho, passa a ser acionista da lucrativa estatal a PUXABRAS
Com a vênia do festejado autor (puxa-saquismo explícito!), tomo a liberdade de refletir sobre a fenomenologia da atração irresistível do Poder a partir do testemunho real e das experiências vividas.
De fato, o Poder fascina, enlouquece e ensina.
O fascínio perdura como a mais antiga luta da espécie humana.
A loucura é a enfermidade contraída pelo vírus do "quero, mando e posso" sempre em marcha insensata e cruel.
Na versão mais benigna, é um privilegiado posto de observação sobre os mistérios da natureza humana.
A experiência que vivi, não aniquilou, mas arrefeceu o fascínio; não chegou a enlouquecer, mas perturbou muito meu juízo; aprendi sobre a grandeza e a miséria humana, com a privilegiada convivência com o puxa-saco.
Comprovei o relato de Nestor. Eles são indestrutíveis e inevitáveis. De repente, a gente corre o risco de gostar da adulação. Um perigo. O puxa é o maior especialista do mundo nas fraquezas da psicologia dos poderosos e são insuperáveis na arte de agradar.
Tem mil faces e mais de mil disfarces. A presença nefasta do puxa-saco nas cortes e nos palácios ocupou a mente brilhante de Maquiavel ao aconselhar o Principe no capítulo XXIII "Como evitar os aduladores". Diz o sábio florentino: "Refiro-me ao erro de darem ouvidos aos aduladores que povoam todas as cortes. É que os homens são de tal modo acessíveis à lisonja e tão facilmente se deixam por ela enganar que só com dificuldade se defendem dessa praga".
Rogo ao leitor generosa paciência, mas a segunda parte é o complemento do artigo, espaço em que exploro mais dois tipos e narro três casos de puxa-saquismo explícito dos quais sou personagem e testemunha ocular: O assessor do Ministro que cortou o cabelo duas vezes no mesmo dia; As botas do governador; A gripe do governador.
Gustavo Krause, ex-governador de Pernambuco