Theodor Adorno (1903-1969), que estudou em Viena com Berg e Schönberg (mestres do dodecafonismo), dizia na sua “Estética” que a pergunta “-Você gosta desta música?” não fazia mais sentido: nós não dispúnhamos mais dos critérios estéticos (o que chamamos de “bom gosto”) necessários para avaliar a qualidade (ou a falta dela) composicional de uma música.
Em seu conhecido elitismo, Adorno acusava a “indústria cultural” de ter promovido um desastroso rebaixamento (a “semi-formação”) dos valores estéticos produzidos pela “cultura de massas”, despolitizada, a-crítica e feita para ser imediatamente consumida em sua inevitável efemeridade, para ser rapidamente substituída pela próxima moda. Para Adorno este era o caldo de cultura que favorecia a sensibilidade protofascista!
Talvez não seja bem assim Herr Professor Adorno! Embora eu reconheça os efeitos políticos da cultura de massas (da qual não podemos simplesmente nos livrar!) houve inúmeras tentativas de difusão democrática de uma cultura musical mais sofisticada, com apresentações públicas e gratuitas de peças do repertório que chamamos de “clássico” ou “erudito” para o homem comum, quer dizer, aquele sem nenhuma educação musical específica e acostumado com composições de dois acordes e letras de piedosa pobreza literária, e que rapidamente caem no “gosto popular” (uma expressão que, aliás, mereceria uma análise mais cuidadosa, na medida em que não existe um “gosto de classe” que não tenha sido produzido por aparelhos de difusão de massa e pelo acesso a equipamentos que formam nosso “capital cultural”).
Aqui mesmo no Recife, nos anos 60, tanto sob a administração de Pelópidas quanto sob a de Arraes, o Teatro Santa Isabel (lugar e símbolo de um consumo cultural restrito e aristocrático) abria suas portas para que nossas orquestras sinfônicas (sob as batutas dos Mário Câncio, Eleazar de Carvalho, Fittipaldi, Karabitchevsky, Geraldo Menuccci) apresentassem seu repertório “erudito” com explicações didáticas sobre os instrumentos e suas funções, a importância daquelas composições na história da música, os estilos aos quais pertenciam, etc.
Mais tarde, a professora Elyanna Caldas retomou a experiência, sob a Secretaria de minha querida Silke Weber, no Conservatório Pernambucano de Música, e agora, sob a Coordenação e Curadoria do professor da UFPE Antônio Nigro, temos a felicidade de ocupar o Memorial de Medicina (Praça do Derby), sempre aos domingos (ver programação no Facebook em “Música no Memorial de Medicina” e Cultura e no Instagram em “epianope”), aberto ao público e com a presença de recitalistas de todo o país (inclusive de meu filho Lucas Brayner e sua esposa Nayanne Nogueira que, perdoem-me, não resisto em fazer a publicidade!), que apresentarão um repertório sofisticado e com a possibilidade de, após cada apresentação, o público poder intervir com perguntas, avaliações, opiniões...
O projeto MÚSICA NO MEMORIAL será realizado na sala que porta os nomes de dois de nossos maiores pianistas e professores, nomes que marcaram definitivamente suas presenças na cena pianística pernambucana: EDSON BANDEIRA DE MELO e JOSEFINA AGUIAR (Sala “BANDEIRA & AGUIAR”), projeto que tem como ator principal o... PIANO: piano como solista, como parte de um grupo de Câmara, na música de filmes, a quatro mãos, com dois pianos. Em suma: o piano plural!
Penso que tais iniciativas culturais terminam por desfazer um preconceito e um mal entendido: imaginar que o “povo” só gosta de porcaria, coisa de baixo nível estético, “povo” incapaz de produzir ou de consumir produtos culturais de alta qualidade: como disse, um deslavado preconceito! Iniciativas como essa, patrocinadas pela UFPE mostram que o lugar da cultura, em suas mais diversas e plurais manifestações, é na praça pública. E é aqui onde o talento individual de um artista coincide com sua função política republicana.
Na programação encontra-se uma frase da professora Josefina Aguiar: “Uma partitura, um piano, uma sala de aula e eu esqueço do mundo!”. Talvez não esqueça, professora: a senhora cria um Mundo. Aliás, muito melhor!
Flávio Brayner é Professor Emérito da UFPE