O Brasil - eterno País do Futuro, que "tem um grande passado pela frente" (Millôr Fernandes) - vem nadando em revolto mar mundial há bastante tempo. Um contexto de permanente crise - ou de sucessões de crises -, o que idealmente deve ser, entre estudiosos, analisado com conceitos claros e pedagogia que fortaleça o avanço do conhecimento da realidade.
Ocorre que clareza não é o forte em ambiente envenenado por pejorativos, mesmo na cátedra de cientistas sociais. "Globalização", por exemplo, ainda é conceito freqüentemente mal utilizado, a despeito de alertas de analistas que respeitam a História. Trago aqui uma contribuição de John Gray, que - em livro de 1998, "Falso Amanhecer", quando a nova onda de globalização ainda completava o primeiro decênio - alertava: "Muitas discussões confundem globalização, um processo histórico que começou há séculos, com o projeto político efêmero de um livre mercado em escala mundial" [grifos meus]. O pejorativo 'neoliberalismo" já era pau para toda obra de insulto, e isso tinha uma razão: o fato de a odiada britânica Margareth Thatcher e o subestimado Presidente americano Reagan, ex-ator, serem - a partir de 1979/80 - os ícones do 'neoliberalismo", na verdade o liberalismo de sempre com a vestimenta de 'mercado mundialmente livre' [idem]. A globalização, como aponta Gray, é a "crescente interconexão da vida econômica e cultural em partes distantes do mundo" - um vetor da 'projeção do poder europeu'. Algo que remonta ao século XVI, e que no Brasil veio a ser tratado por Furtado como "expansão comercial ultramarina". O mais recente avanço da globalização veio com a microeletrônica, que passa a turbinar a difusão de novas tecnologias de informação. Contexto em que o capital financeiro, avançando na internacionalização, assume maior preponderância e demanda 'flexibilização' de mecanismos regulatórios. Primado da necessidade de eficiência na competição, em um mercado financeiro cada vez mais diversificado e com frouxas amarras.
Ocorre que a evolução pós-1990 trouxe maior diversidade mundial. A dissolução do império soviético não contribuiu para unanimidade capitalista. E a China, misturando regras de mercado, atração de capital externo e mão-de-ferro no controle estatal da sociedade, tornou-se - a partir de 1978/79 - potência que, nos últimos dez anos, passou a ter destacada influência econômica e política. Amplo fluxo de capital chinês, principalmente em infra-estrutura de transporte (marítimo e ferroviário), em paragens bem além do próprio território, gerando frutos do longamente planejado projeto da 'Nova Rota da Seda'. Algo que já alcança África, Ásia e Europa, e até a América Latina - quase 150 países.
O que John Gray já antevia (a efemeridade do projeto de livre mercado global) foi materializado ao longo de mais dois decênios da presente onda de globalização. A crise inicialmente americana de 2007-2008, rapidamente tornada mundial, escancarou o desagregador projeto de desregulação, particularmente na área financeira. No início dos anos 2020, o Reino Unido deixa a União Européia - depois de arrastado processo de crises políticas em mais de três anos. Frustração da ideia de um capitalismo global auto-regulado, assim como já havia se dado com o quimérico sonho de um socialismo mundial.
O saldo atual dessa evolução recente, pondo-se de lado o grande progresso tecnológico e outros avanços, pode ser dolorosamente resumido. Trata-se de crescimento da desigualdade na distribuição de renda, alarmante persistência de inaceitáveis níveis de pobreza e miséria, avanço de movimentos corrosivos da extrema direita, ameaças à sustentabilidade da democracia. E um aparente paradoxo: o acesso amplo a novas tecnologias de informação e comunicação passa a servir ao culto do ódio, a desinformação, à quebra da privacidade do ser humano. Ademais - a depender do contexto político-social - amplia-se a supressão de liberdades individuais por estados despóticos; a exemplo de Coréia do Norte, África, vários países do mundo árabe, Ásia, Leste Europeu, e a latina Nicarágua sandinista: imagine-se a funcionalidade de tecnologias de informação para o autoritarismo nessas paragens. Flagrante contraste com o amplo mundo democrático, Brasil incluído.
Mas, aqui entra a novidade da emergência da China, com a Nova Rota da Seda, em associação a um discurso do vitalício dirigente Xi Jinping, a alardear o que julga como 'superioridade' do regime político chinês versus a democracia ocidental. Esconjure-se a associação entre poder econômico-geopolítico em expansão e auto-elogio de um regime em que novas tecnologias de informação são usadas como controle estatal do cidadão. A 'teletela' de Orwell é pinto perto do que se dispõe hoje para surveillance (vigilância) do cidadão. '1984' está na China e alhures. Que aqui não chegue.
Pois é, o Brasil não tem um milésimo da capacidade oriental de planejar e cumprir metas de longo prazo. Há muito predominam - no exercício da política e da governança no País - diretrizes de curto prazo. Lei do 'meu pirão, primeiro'. A sociedade, sem apropriada reação cívica. Nunca precisamos, tanto, de um governo com um mínimo de racionalidade e visão de longo prazo. Teremos um, desta vez?
Tarcisio Patricio, doutor em Economia. professor aposentado da UFPE