Deveria dedicar a coluna à guerra. Ou ao eclipse. No entanto, fiel ao acaso, vou dividir aqui uma leitura que me caiu às mãos recentemente. Refiro-me ao livro Devagar, a poesia, de Rosa Maria Martelo. Embora um ensaio sobre a história da poesia, a obra contém reflexões sobre arte de maneira geral, sobre política, economia e relações sociais, traçando um perfil muito preciso, até cruel, da classe dirigente e das ideologias.
Ela investiga a poesia no contexto da política dominante no curso do tempo, a partir da poesia como arte da resistência. Particularmente em Portugal. Vou deixar de lado, porém, a consideração sobre a poesia em si mesma, e tentar traduzir um conceito central na política que ela explica de forma magistral.
Por exemplo. A definição de neoliberalismo diz que nos devemos guiar por conceitos como risco e competitividade, num mundo onde triunfam os objetivos, tais como otimizar a produtividade, a qualidade, a eficiência. Assim, devemos ser empreendedores. E seremos sempre consumidores e clientes, numa ordem de empresários rodeados de colaboradores, como motores da economia.
Tudo isso não passa, segundo ela, de palavras velhas recauchutadas com noções novas. Aqui ela invoca Orwell em 1984, para quem dizer mentiras deliberadas e nelas acreditar piamente, esquecer qualquer fato que se haja tornado inconveniente, e depois, quando de novo se tornar preciso, arrancá-lo do olvido o tempo suficiente à sua utilidade, negar a existência da realidade objetiva e ao mesmo tempo perceber a realidade que se nega - tudo isso é indispensável.
É o que Orwell chama duplipensar, que consiste em deslocar o sentido da realidade a golpes de vocabulário. Duplipensar quer dizer a capacidade de conservar simultaneamente na cabeça duas crenças contraditórias e aceitá-las a ambas. Apesar de a autora enfocar o neoliberalismo, a percepção aguda desse duplipensar de Orwell se aplica a multifacetadas situações da sociedade nos dias de hoje, desde a repetição da mentira como instrumento do nazismo e do fascismo, até a hipocrisia das grandes corporações defensoras dos valores ASG destruindo o planeta ao tempo em que proclamam os valores de sustentabilidade.
Releva notar como, em Portugal, assim como no Brasil, o golpe (a palavra é minha, não da autora) do duplipensar sustenta estratégias de dominação da classe opressora e de fins meramente lucrativos, a exemplo da privatização resolver todos os problemas de infraestrutura, em suposto benefício da classe trabalhadora e dos consumidores, quando, na verdade, os serviços sociais do Estado não podem ser vistos unicamente como despesas sem retorno, a quase não terem relação com os impostos que pagamos.
É um livro para abrir os olhos. Para duplipensar no sentido inverso, ou em verso.
E sim, o eclipse é obra de Deus, assim como a guerra. Nada posso.
João Humberto Martorelli, advogado