Desequilíbrios fiscais têm sido frequentes na história recente da economia brasileira. especialmente na gestão Dilma Roussef. Travas fiscais foram colocadas e frequentemente desrespeitadas por meio de um conjunto ardiloso de mecanismos que ensejaram, inclusive a base legal, para o impeachment traumático da Presidente, um julgamento político, mas que necessitava de um fundamento jurídico para sustentá-lo. No Governo Temer colocou-se na Constituição Federal (CF) uma inusitada regra fiscal; o teto de gastos que foi também frequentemente burlado apesar da rigidez imposta pelo fato de estar inscrita na Carta Magna. No Governo Lula concebeu-se, sob a liderança do Ministro Fernando Haddad, um novo arcabouço fiscal que a duras penas foi aprovado pelo Congresso Nacional, por meio de legislação ordinária (Lei Complementar), retirando, assim, da CF uma descabida regra macroeconômica. Essa regra prevê para 2024 que a meta de resultado primário seja zerada dentro de um certo intervalo de tolerância, uma banda entre 0,25% e -0,25% do PIB. O principal fundamento do novo arcabouço fiscal é que as despesas aumentem a um ritmo inferior ao do crescimento da receita, ou seja que as despesas só possam se elevar em 70% do aumento da receita. O atual teto de gastos passa a ter banda com crescimento real da despesa primária entre 0,6% a 2,5% ao ano. Caso contrário, travas seriam impostas tornando mais difícil ainda a trajetória fiscal necessária para se alcançar os resultados pretendidos. Se os esforços do Governo de aumento de receitas e redução de despesas resultarem em resultado primário abaixo da banda, haverá uma redução do crescimento de despesas para 50% do crescimento da receita no exercício de 2025.
O Governo Lula está, em 2023, enfrentando dificuldades fiscais que prenunciam ser o equilíbrio do resultado primário previsto para 2024 inalcançável. As despesas aumentaram (3,5%) em 12 meses, até agosto, e a receita líquida caiu (-4,3%) no mesmo período. A situação começou a se agravar a partir de maio deste ano. Em termos absolutos, nos últimos doze meses, até agosto, a Receita Líquida, descontada a inflação caiu R$ 83,8 bilhões. A perda de receita não tem origem apenas na queda dos impostos federais (-1,2%), mas, sobretudo, nos itens não administrados pela Receita Federal tais como dividendos das estatais, recursos oriundos de concessões, pagamento de royalties e participações. Estes itens foram bem mais generosos em 2022. Boa parte do aumento dos gastos teve origem no Bolsa Família (BF) que cresceu R$ 66,7 bilhões. Sua gênesis, portanto, repousa principalmente na mais importante política social do Governo Lula. O gasto total com o BF em 2023 será da ordem de R$ 167 bilhões, sendo, por conseguinte, irreversível. Mais gastos, e perda de receita, advirão do reajuste do salário-mínimo e do aumento da isenção do imposto de renda. Nos 12 meses, até agosto, o déficit primário foi de R$ 70 bilhões (R$ 1,95 bilhões de despesas contra R$ 1,88 bilhões de receitas) e deve aumentar ainda mais até o final do ano. Há rigidez, por causa dos compromissos político-eleitorais assumidos, em cortar gastos. A única saída é aumentar a receita, o que não é fácil. A sociedade brasileira já paga uma elevada carga tributária, sendo refratária ao aumento de impostos, fato que está marcadamente presente nas discussões sobre a Reforma Tributária em curso no Congresso Nacional. Busca-se, na verdade, nichos para a cobrança de impostos que recaiam apenas sobre os mais ricos (fundos exclusivos e off-Shore). Mesmo assim uma base parlamentar ainda frágil e instável não garante que as tentativas sejam bem-sucedidas.
O mercado já percebeu essas dificuldades fiscais que se manifestam na elevação dos juros futuros, ou seja, está se cobrando mais para emprestar dinheiro ao governo. E decisões importantes de investimentos são tomadas com base nesses juros mais do que nos juros correntes que estão ainda muito altos apesar das decisões recentes do Banco Central de reduzir a SELIC, a taxa de juros básica da economia. Juros crescentes aumentam o serviço da dívida, sua rolagem e junto com maior endividamento, elevam a dívida bruta como percentual do PIB. A projeção para essa relação em 2023 já se elevou de 60,40% para 60,50% no último mês (Boletim Focus). As agências de risco que deram recentemente indicações positivas sobre a trajetória da dívida brasileira podem mudar de ideia.
O Governo Lula tem um grande desafio fiscal pela frente premido entre as promessas de campanha que implicam em mais gastos e as regras propostas pelo próprio governo para assegurar ao mercado e a sociedade que tem responsabilidade fiscal. A ver!
Jorge Jatobá, doutor em Economia, professor titular aposentado da UFPE e sócio da CEPLAN