No “O elogio à loucura”, obra de Erasmo de Roterdã, colhem-se anotações sobre “aquilo que deveria ser e aquilo que realmente é”. Também sobre a importância das leis como reflexo ou imperativo da sociedade, jamais como projeção de interesses individuais espúrios (o que tem sido). É nesse segundo aspecto que Montesquieu aconselha parar o poder. Todavia, nem sempre o “stop” é bem-sucedido. Afinal, o objetivo do político, grosso modo, é conquistar e manter o poder e seus privilégios, sem nenhuma modalidade de restrição.
A lembrança desses fatos emerge após a leitura da matéria divulgada pelo JC referente à lei nº 18.355 de 23.10.23, procedente da Assembleia Legislativa de Pernambuco (Alepe). O diploma nasceu com a finalidade de criação de até 124 cargos comissionados com gastos não superior a 420 mil por mês (o limite permite a melhor aceitação do eleitor). Circundemos em torno de cinco aspectos encravados no diploma legal.
Ponto 1: As funções contidas no texto de lei serão exercidas com admissão de servidores não concursados – o grande furúnculo do serviço público brasileiro.
A norma beneficia 42 dos 49 parlamentares que compõem a Casa. Os “convidados” ou “apadrinhados” irão exercer a nobre função de assessores jurídicos. Cumpre aos mesmos a minuta de projetos de leis, pareceres e resoluções sobre matérias legislativas.... Tudo com vencimentos entre dois mil e quinhentos e cinco mil reais.
Ponto 2. Há profissionais com aptidão jurídica e excelentes neurônios que aceitem tão indigente ou desprezível salário? Muitos estagiários de direito já recebem o valor supracitado.
Ponto 3: O chamado processo legislativo não é um “cocktail party”. Exige expertise ou muito conhecimento acerca dos tipos, conflito e natureza das leis, validade da norma (vigência, eficácia e fundamento); jurisprudência e constitucionalidade, preenchimento de lacunas, espécies de interpretação, dogmática jurídica... O mesmo raciocínio se aplica aos pareceres. Esses pressupõem um mergulho vertical no estudo das diferentes legislações, interpretação ou exegese e conhecimento da analogia e dos princípios gerais do direito....
Ponto 4: É dedicado a Olavo Bilac e “a última flor do Lácio, inculta e bela” com o significado de domínio da língua portuguesa. Será que os “recrutados” aprenderam o
nosso idioma?
Ponto 5: Em algumas unidades da federação – incluindo o Rio de Janeiro – há situações, já objeto de revelação persistente da mídia, de servidores que partilham os vencimentos com seus benfeitores políticos – são as famosas rachadinhas ou, se desejarem, a nova modalidade de socialismo do século 21. Por isso é indispensável excesso de cuidado para que a maioria dos nossos parlamentares não seja objeto de difamação, embora o Poder Legislativo de Pernambuco seja integrado por homens probos, honestos e incorruptíveis. Ainda assim, por cautela ou prudência, não se deve esquecer a história atribuída a Júlio César no ano 62 a.C.
Na residência do nobre imperador romano, Pompeia Sula, a bela e quase inatacável esposa, organizava uma festa integrada apenas pelo sexo feminino com a finalidade de homenagear a Boa Deusa. Publios Clodius, reconhecido pelo seu lado femeeiro ou mulherengo, tentou o ingresso na festa vestido de tocadora de lira. Foi denunciado por uma das escravas de Aurélia, mãe de César e levado a julgamento por sacrilégio.
Para surpresa dos senadores romanos, o imperador declarou que nada sabia acerca de Publios. Então, qual o motivo de haver se divorciado da encantadora Pompeia? E o imperador rebate: “a mulher de César deve estar acima de qualquer suspeita”, donde a máxima: “à mulher de César não basta ser honesta, deve parecer honesta”. Assim deve acontecer com o Legislativo e os demais poderes.
Ainda sobre o socialismo do século 21, não se deve esquecer que os pecantes precisam admitir suas culpas ou iniquidades, numa espécie de vindima contra o algoz ou verdugo. Afinal, o homem que efetivamente labuta mantém uma aversão insaturável contra o representante que se apropria, de forma impune, do seu sustento.
Para não esquecer, os Estados mais desenvolvidos do Planeta já renunciaram à função de assessor parlamentar nos gabinetes. Cada deputado tem confiabilidade e aptidão para costurar com as suas próprias linhas.
É o exemplo da Suécia e da Dinamarca onde constitui uma execração a presença nos gabinetes de 25 a 50 assessores além de outras benesses que fogem ao texto de hoje. Mais: os representantes do povo vão ao Parlamento dirigindo as suas bicicletas e residem em quitinetes pagas com os salários que auferem. E lá vem a indagação final: Qual deputado, senador, vereador teria a audácia ou mesmo coragem de propor mudanças que barrem essas formas de sangria nos cofres públicos?
Dayse de Vasconcelos Mayer é constitucionalista.