Opinião

Parteiras, patrimônios, padres...

Tocou-me, especialmente, a passagem teatralizada da importância histórica, cultura e política do Movimento de Cultura Popular

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FLÁVIO BRAYNER

Publicado em 08/01/2024 às 18:50
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Meu amigo Ricardo Mello, Secretário de Cultura do Recife, convidou-me para assistir a solenidade de entrega do título de PATRIMÔNIO VIVO DO RECIFE a quatro entidades /pessoas: Quadrilha ORIGEM NORDESTINA, o Caboclinho TUPI, o porta estandarte do Galo da Madrugada, ZACARIAS, e à parteira EDILEUZA MARIA DA SILVA.

Confesso que fiquei bastante emocionado sobretudo com a apresentação inicial de três ótimos atores que conseguiram, em pouco mais de meia hora, representar a história cultural do Recife (e de Pernambuco), a partir de 1955, com a chegada do Engenheiro Pelópidas da Silveira à Prefeitura do Recife e indo até ao Golpe Militar de 64.

Tocou-me, especialmente, a passagem teatralizada da importância histórica, cultura e política do Movimento de Cultura Popular, iniciado em Maio de 1960, já sob a Prefeitura de Miguel Arraes e que ficara, de início, sob a direção de seu sobrinho, Miguel Newton Arraes e, em seguida, aos cuidados do Professor Germano Coelho, autor de um volumoso tratado sobre aquele Movimento.

A palavra PATRIMÔNIO tem origem latina e significa, etimologicamente, aquilo que recebemos (“monium”) ou herdamos no pai (“pater”): há nesta ideia a PRESUNÇÃO DE PERMANÊNCIA, aquilo que não deveríamos esquecer nem abandonar, sob risco de perdermos nossa orientação num mundo que não apenas se caracteriza pela vertiginosa transformação, mas pelo consumo imediato de tudo que é “produzido” e, com as redes sociais, nós também-subjetividades individuais - consumimos e somos (subjetivamente) consumidos todos os dias! Que erijamos um monumento, uma pirâmide, um palácio... como patrimônio (histórico) a ser “preservado”, isto é algo ao qual estamos acostumados, sobretudo nas sociedades ditas “históricas”, ou seja, aquelas que creem que a ideia de preservação garante uma identidade cultural ou nacional, sem o quê, tendemos a nos desagregar: o pesadelo de todo “social”! Tais medidas se caracterizam, para mim, como verdadeiramente “culturais”, que dizer, nos oferece um solo simbólico ou material onde assentarmos a continuidade de um Mundo Comum e de uma identificação subjetiva, a partir de um passado e de um projeto.

Emocionou-me, ainda mais, o fato de uma parteira, Dona Edileuza, ter recebido a comenda: claro que não pude evitar a lembrança daquele que “nos ensinou a pensar”, Sócrates. Aquilo que o Mestre ateniense chamava de “maiêutica” era apenas o “PARTO DAS IDEIAS”: ele supunha que nossa alma, antes de se integrar a um corpo, passara pelo Mundo das Ideias, mas em seguida, ao mergulhar nas águas do Rio Lethos (o esquecimento), perdera a memória das essências: assim, todo trabalho pedagógico não era o de “ensinar”, ou “transmitir” algo, mas o de relembrar, através da “dialogia”, aquilo que havíamos esquecido naquela passagem pelo Lethos! Trazer à luz o esquecido era o fundamento diálogo socrático: um parto, pois! Dona Edileuza (que declarou não ter tido nenhum óbito no exercício de sua nobilíssima tarefa) é, talvez a última parteira de nossa história local, ainda viva: nascemos todos, hoje, em hospitais e maternidades, cercados de tecnologia, claro, evitando todos os riscos inerentes a um parto. Mas o que Dona Edileuza faz, usando sua intuição, experiência e sensibilidade é, como ela mesmo disse, “pegar a criança” e, agora digo eu, introduzi-la num Mundo estranho e já estruturado, onde ela, a criança, precisará de nossa ajuda para constituir sua identidade subjetiva e social.

No dia em que escrevo este artigo, 6 de janeiro, é Dia de Reis, quando aqueles três senhores, guiados por uma estrela, chegam a Bethlem para visitar e presentear uma criança que viera ao Mundo alguns dias antes. Não sei qual “Dona Edileuza”, ajudou Maria no parto daquela criança que, com sua vida e sacrifício, nos ajudou a melhor compreender a chamada “condição humana”, essa mesma “condição” que não pode prescindir do “ROSTO DO OUTRO”, este rosto que nos interpela incondicionalmente.

Estes homens-e não posso deixar de pensarno Padre Júlio Lancellotti- que enxergam no rosto do Outro um apelo para que sejamos um pouco mais “humanos” (e só podemos ser“humanos” quando integramos os Outros em nossa própria subjetividade!). O trabalho que Dona Edileuza faz, promovendo a “continuidade do mundo” (Arendt), trazendo à luz inclusive os desvalidos e despossuídos, se completa com o trabalho do Padre Júlio Lancellotti que procura preservar o que ainda há de humano naqueles desvalidos, evitando que eles sejam assassinados pela pobreza e pelo esquecimento, aqueles que Dona Edileuza coloca na existência.

Parteiras, “homens humanos” (G. Rosa), patrimônios culturais, porta estandartes, simbologia dos povos originários (Caboclinho)... sem isso, nós – homens- introduzidos desde cedo na CULTURA, não temos “PATRIMÔNIO”, ou seja: a homenagem e a lembrança que devemos aos Pais que nos legam um mundo, do qual somos instados a cuidar e continuar!

(Para Ricardo Mello e para o Padre Fábio Potiguar, curador do Memorial Dom Hélder Câmara)

Flávio Brayner, professor

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