Um otimista no Brasil
Na verdade, trata-se – e isso é crucial – de também eliminar o malda privatização do Estado em proveito de grupos oligárquicos
Um cidadão brasileiro que sempre cultuou certo otimismo. Um resistente. Em um país em que a República foi proclamada por um marechal, há 134 anos. Em que a sombra militar permanece à ronda. Em que a democracia resiste: a intempéries e a má concepção expressa em devaneios, como o de que democracia é coisa um tanto relativa, ou uma simples vírgula em contexto amplo. É jovem democracia, sim; na verdade, pouco mais do que uma criança. Um país em que octogenários e nonagenários contam histórias – por voz própria ou dos pais, ou de amigos, de professores. Sobre seis anos da Ditadura do Estado Novo (1939-45), governo Getúlio Vargas. Suicídio de Vargas (1954).A Era JK (1956-60) do otimismo com industrialização e o “País do Futuro”. Os 21 anos da Ditadura Militar (1964-1985):censura, tortura, sangue e muitas lágrimas, com importantes reformas institucionais na economia, o que obviamente não alivia o custo humano e cívico da ditadura. Eleições diretas (1989), alguns avanços e desilusões. O forçado, e depois desavergonhado, costume de conviver com preços muito altos (felizmente, sem viver o horror de uma hiperinflação). Acomodação devida a uma originalidade brasileira, a correção monetária ampla, que conformava a (quase) todos – exceto os sem-conta bancária, os desgraçadamente pobres. Economia com superinflação que parecia eterna, e agora a completar 30 anos em patamar razoável, rumando para ficar abaixo de 5% ao ano. A moeda Real foi conquista que alimentou a perspectiva de um novo Brasil, inclusive via privatização, embora não isenta de controvérsias no processo. Quem quiser testar a mudança, pergunte ao brasileiro se quer que a telefonia – por exemplo – volte a ser provida por estatais.
O cidadão otimista tem claro que há muito a se aprender sobre privatização, preferivelmente sem ser tratada como panaceia, até porque está em revisão em diversos países, e depende muito do setor de atividade. Na verdade, trata-se – e isso é crucial – de também eliminar o malda privatização do Estado em proveito de grupos oligárquicos.
Aí o otimista se dana com a ressurgência da sanha oligárquica na privatização do Estado. Algo que pôs a secular corrupção em novo patamar: locupletem-se todos os partidos e ninguém será punido. Vieram o Mensalão e o Petrolão. O combate – a Lava Jato – virou um ornitorrinco, inclusive com contribuição dos principais agentes: Juiz e Procurador. E ainda veio a tal da “Vaza Jato”, uma espécie de Zorro mal explicado “a favor do bem”. E não é que “deu certo” (?!), para dissabor do otimista? Pois é, a corrupção foi premiada. Com direito a inconcebíveis e acachapantes “canetadas de Toffoli” – a cereja no bolo dos beneficiários.
Sociedade civil ausente, aparentemente anestesiada. E um ringue com dois polos ideológicos extremos, que se retroalimentam, na divisão da maioria do butim de votos. “Narrativa” – palavra mágica – assume o pódio da retórica. Cada um tem a sua, ambas falsas.
E está claro, neste mundo: desilusão cívica joga sociedades no limbo, para gáudio do autoritarismo. O polo da extrema direita sabe que, jogando-se fora alguns escrúpulos, há boa chance de vitória eleitoral; sem forças militares, sem tanque – basta solapar a própria democracia, com apoio de expressiva fração de eleitores. O paradigma da microeletrônica – com WhatsApp, Telegram, Instagram, Facebook, manipulação de mecanismos de Inteligência Artificial, et caterva – ajuda bastante, em mãos impróprias.
A tal terceira via é agulha sendo buscada no palheiro. O cidadão otimista persevera, racionaliza. Mas, como está difícil...
Aí as reflexões do otimista põem na conta um choque de algo que se anunciava desde o início do mandato do governo anterior. Vemos surgir do porão do anacronismo – sim, é anacronismo, a despeito da sombra militar – a violência do 08/01/2023, contra os poderes constitucionais, como resultado de algo urdido por golpistas (militares e civis) de alto escalão do governo anterior, inclusive envolvendo o ex-presidente. Tentativa de golpe, de fato, cuja investigação traz – a cada dia – importantes traços de evidência empírica.
Pois não é que o empedernido otimista vê nessa coisa assustadora uma oportunidade para o país avançar? Vai depender, muito, do que resultar dessa investigação, em termos de justiça. Apesar do vácuo cívico, a sociedade civil – o que resta como “organizada” – tem importante papel. Teremos, enfim, uma vacina preventiva para golpes, que inclua o componente ‘fim da sombra militar’?
Tarcisio Patricio, Doutor em Economia. Professor da UFPE, aposentado.