Dezembro é um mês especial no calendário gregoriano e muito expressivo para a cultura ocidental desde que o Papa Julius I (337-352) cristianizou o dia 25, o Natal, dia em que os romanos celebravam a chegada renovadora do Deus Sol (solstício do inverno).
A força da tradição religiosa no último mês do calendário gerou o "espírito natalino" que se manifesta em comportamentos coletivos de solidariedade, fraternidade, gestos generosos de presentear, votos de bons augúrios associados a símbolos, personagens (Papai Noel), dias de movimento intensos de congraçamento, paz familiar, regada a uma variada e saborosa gastronomia.
O dezembro do ano de 2022 emitia sinais de inquietação política para o que deveria ser, apenas, a rotina da alternância do poder. O clima hostil começara muito antes. As eleições de 2018 registraram uma campanha acirrada, conflituosa, extremada, herdeira de um impeachment, da descrença nas instituições democráticas, do ressentimento social ao ódio expresso nos discursos, culminando com o atentado de 06 de setembro de 2018.
Por sua vez, o enfraquecimento dos mecanismos clássicos da democracia representativa se agravava na medida em que a voz dos representados, mobilizada pelas redes digitais, não era ouvida o que afetava o estabilishment, abalado pela corrupção, ineficiência e pelo estrondo das ruas mundo afora (junho de 2013, no Brasil). Neste contexto, tem sido significativo o avanço das ideias e regimes autoritários, espaço de afirmação dos líderes populistas, impulsionado pelo discurso salvacionista.
Ao longo da gestão, o então Presidente, demonstrou, em inúmeros episódios, enorme desapreço pelas regras e instituições da democracia liberal. Os alvos reiteravam o projeto de poder das autocracias. Os ataques mais frontais eram as suspeitas contra o sistema eleitoral, o mesmo que o elegeu, e que, no pleito de 22, elegeu o adversário. No dia 08 de Janeiro, a violência política atingiu seu ápice: agrediu símbolos e danificou o patrimônio republicano. Um enredo do desespero e da barbárie.
Rompendo o ritual democrático, o candidato derrotado não reconheceu a vitória do candidato vitorioso. Somente, após o dia 03 de novembro, esteve, em rápida passagem, no palácio do Planalto, para um encontro com o Vice-Presidente eleito, Geraldo Alckmin e isolou-se, durante 20 dias, no Palácio da Alvorada. Não digeriu o revés. Inconformado, no dia 30, viajou para os EUA para não passar a faixa presidencial.
A julgar pelos depoimentos dos ex-comandantes do Exército, general Marco Antonio Freire Gomes e da Aeronáutica, brigadeiro Carlos de Almeida Batista Júnior, prestados à Polícia Federal, no início março, é legítimo supor que o mês de dezembro foi de muito trabalho para o Presidente. Um incansável trabalho de articulação para legitimar o projeto de poder golpista, com apoio dos chefes militares a partir das "hipóteses de utilização de institutos jurídicos como GLO (Garantia da Lei e da Ordem) e estados de defesa e sítio em relação ao processo eleitoral".
Não fosse a reação dos mencionados comandantes, bem como o amadurecimento dos valores do regime democrático brasileiro e as instituições que lhe dão sustentação - separação dos poderes, imprensa livre (Consórcio de veículos de imprensa), as manifestações da sociedade civil (Carta às brasileiras e brasileiros em Defesa do Estado Democrático de Direito, liderada pela Faculdade de Direito da USP e o papel da OAB), a cidadania ativa e coesa - a tenebrosa iniciativa jogaria o Brasil no precipício de uma ruptura liberticida.
Importante ressaltar que a nobreza do ideal democrático, vítima dos seus algozes, não condena qualquer pessoa sem que sejam respeitados o direito ao contraditório, o devido processo legal até o julgamento final dos fatos apurados. Os investigados e, formalmente acusados como réu, serão julgados dentro das "quatro linhas da Constituição".
Feita a ressalva, Dezembro de 2022 vai entrar para a história em que a ceia do Natal não serviu o peru indigesto do projeto autoritário: morreu de véspera.
Gustavo Krause, ex-governador de Pernambuco