Opinião

Os intelectuais e a Cultura Popular: o caso do CPC

Carlos Estevam Martins (1934-2009) elaborou um conceito de arte (cultura) popular que provocou, entre os intelectuais do período, um calorosíssimo debate

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FLÁVIO BRAYNER

Publicado em 22/04/2024 às 10:44
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A tradição iluminista atribuiu à elite intelectual uma espécie de missão cultural salvacionista: dela dependeria o esclarecimento das consciências “populares” mergulhadas na ignorância e na “infâmia!” (Voltaire). Aqui, o intelectual aparecia como uma espécie de embaixador do universal, consciência e eloquência da sociedade, voz dos silenciados pela opressão, Logos (palavra e razão) anunciando futuros radiosos...

Carlos Estevam Martins (1934-2009), legítimo representante desta tradição iluminista (da qual o leninismo é peça expressiva), tradição espremida entre generosidade e autoritarismo, fundador e presidente do CPC (Centro Popular de Cultura) da UNE (1962), num Manifesto que faria data entre nós, elaborou um conceito de arte (cultura) popular que provocou, entre os intelectuais do período, um calorosíssimo debate.

No Manifesto do CPC-UNE, Martins definiu "arte do povo", "arte popular" e "arte popular revolucionária" da seguinte maneira: “A arte do povo é predominantemente um produto das comunidades economicamente atrasadas e floresce de preferência no meio rural ou em áreas urbanas que ainda não atingiram as formas de vida que acompanham a industrialização. O traço que melhor a define é que nela o artista não se distingue da massa consumidora”.

Para Estevam, a arte do povo e a arte popular quando consideradas de um ponto de vista cultural rigoroso dificilmente poderiam merecer a denominação de arte; por outro lado, quando consideradas do ponto de vista do CPC, de modo algum podem merecer a denominação de popular ou do povo, assim "só se pode falar de uma arte do povo e de uma arte popular porque se tem em vista uma outra arte ao lado delas, ou seja, a arte destinada aos círculos culturais não populares".

Diferentemente do espaço destinado à definição de "arte do povo" e "arte popular", à "arte popular revolucionária" foram destinados inúmeros parágrafos ao longo do "Manifesto". Em linhas gerais, a "arte popular revolucionária" e a declaração dos princípios artísticos do CPC poderia[m] ser resumida[s] na enunciação de um único princípio: a qualidade essencial do artista brasileiro, em nosso tempo, é a de tomar consciência da necessidade e da urgência da revolução brasileira, e tanto da necessidade quanto da urgência. E para conscientizar o "povo" brasileiro, as preocupações estéticas e formalistas deveriam ser subjugadas a fórmulas de fácil compreensão.

Para Marilena Chauí, a "cultura de massa" foi reduzida pelo "manifesto do CPC" à distração e ao escapismo, com brevíssima alusão às demandas e determinações do mercado.

Sob outro prisma, Renato Ortiz avaliou que a ausência de discussões sobre a cultura de massa nesse período pode demonstrar o caráter incipiente da indústria cultural nas décadas de 1940, 50 e início de 60. Para o autor, "há um relativo silêncio sobre a existência de uma 'cultura de massa', assim como sobre o relacionamento entre produção cultural e mercado... É somente em 1966 que vamos encontrar um primeiro artigo de Ferreira Gullar sobre a estética na sociedade de massa".

Preocupado com o processo de produção da obra de arte, José Guilherme Merquior, em artigo publicado no início de 1963, tentou preencher as lacunas deixadas pelo "Manifesto do CPC" no que diz respeito à criação, divulgação e recepção do produto artístico. Foi através do artigo "Notas para uma teoria da arte empenhada" em que o autor manifestou, antes de 1966, a preocupação com o processo de produção da obra de arte na sociedade de massa.

O Manifesto de Estevam Martins terminava, de resto, por defender a posição de que a arte e a cultura popular revolucionária não era aquela produzida pelo povo, mas sim, aquela que os intelectuais elaboravam para desenvolver a sua consciência revolucionária. No fundo, Martins apenas radicalizava uma iniciativa iluminista e, desmoralizando a arte e a cultura popular, reservava para a futura revolução, um lugar de prestígio para os intelectuais.

Veja, meu leitor, como os intelectuais, desde Platão, adoram o poder!

Flávio Brayner, Professor Emérito da UFPE e Visitante da UFRPE

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