Assossego e desassossego: carros elétricos
Um simples carro elétrico estacionado numa garagem subterrânea representa uma ameaça. Um ocasional incêndio se propagaria aos carros a combustão que, nas espremidas garagens atuais, podem soar como uma extensa promiscuidade veicular.
Saudam os adeptos, e os que com estes lucram: os carros elétricos são o futuro. Maravilha que começa a ficar à nossa disposição hoje. Nada de poluição sonora. Silenciosos, não causam alardeio ao se aproximar do transeunte que atravessa a rua. Não emitem - diretamente - gases de efeito estufa. A poluição que indiretamente causam é desovada principalmente no processo de produção de grandes baterias de lítio, e na extração e beneficiamento do minério. O que olhos não veem o coração não sente.
Tal maravilha ganha uma curiosa política pública: carros de 700 mil reais — como os BMW da linha iX, elétricos — passam a ser isentos de IPVA, assim como os elétricos de todos os fabricantes. Em detrimento da produção de carros a álcool, a grande solução brasileira para redução da emissão de dióxido de carbono, principal fator pró-Aquecimento Global.
Carros, ônibus, caminhões a ocupar importantes vias urbanas. Silêncio. O sossego garantido, afinal. O pulsar da atividade econômica em sua máxima expressão, simultaneamente compatível com uma aula de yoga. Ou de meditação. Só mesmo as maravilhas dos veículos elétricos poderiam proporcionar tal progresso. E sossego.
Podem, também, causar desassossego. Não têm tanque de combustível. Mas têm estoque de energia, nas baterias. E podem liberar esta energia de forma não esperada. Podem pegar fogo. Assim como os hospedeiros que as carregam. Não é hipótese absurda. Basta procurar por fotos de incêndios de carros e ônibus elétricos na internet. Há poucos dias, numa entrevista, o chefe de um departamento de bombeiros em uma cidade espanhola aludiu a 40 incêndios de veículos a combustão nos últimos três anos. E 14 sinistros de veículos elétricos. É possível que a contagem de números totais de incêndios de uma e outra categoria de veículo venha a ser a fonte de onde nasce a afirmação "técnica" de que um carro a combustão teria chance 80 vezes maior de incêndio do que um elétrico. Mas a chance de incêndio de cada tipo de veículo depende da grandeza dos respectivos estoques de veículos na cidade ou no país. Na Europa, o número de veículos elétricos é menor que 2% do total. Na Espanha, a percentagem é ainda menor. Mesmo tomando-se 2% como sendo o percentual da Espanha, a chance de incêndio de veículos elétricos seria na proporção de 14 entre os 2% destes, e 40 entre os 98% dos veículos a combustão. O resultado seria uma chance 17 vezes maior de incêndio num veículo elétrico, o que parece exagero. Mas é fruto de uma informação concreta sobre número de incêndios e tamanhos relativos de frotas.
É necessário considerar que incêndios típicos de carros e veículos a combustão são diferentes de incêndios típicos em veículos elétricos. Nos veículos a combustão os incêndios tipicamente se iniciam em fiação elétrica ou com escapamento de combustível, podendo — em geral — ser contidos via desligamento da pequena bateria chumbo-ácida que carregam. Se um extintor não for usado com proficiência, uma explosão pode ocorrer. Incêndios em veículos elétricos tipicamente têm lugar na própria bateria, sendo inútil desconectá-la do hospedeiro. A bateria prescinde de oxigênio para entrar em combustão. Abafá-la? Debalde.
Baterias são acumuladores de energia. As novas — de porte suficiente para garantir razoável quilometragem de veículos —, que demoram a carregar, não foram tão estudadas quanto as antigas chumbo-ácidas, que acumulam energia de forma menos intensa. Estas foram e continuam sendo continuamente aperfeiçoadas. A Baterias Moura, por exemplo, recebe — para fins de análise laboratorial — 1% das baterias de produção própria que são trocadas. Um contínuo esforço de melhoramento. Baterias automotivas — diferentemente das estacionárias — têm, além das questões de trocas químicas para alimentação e descarga, sérios problemas de enfrentar vibrações e choques mecânicos. Torná-las cada vez mais seguras e confiáveis depende de continuada pesquisa. As de lítio simplesmente não tiveram tempo para isso.
Incêndios em baterias de lítio têm características bem diferentes de combustões usuais. Não foram desenvolvidos, ainda, meios para sustá-los. A grande e importante função dos bombeiros, no caso, é evitar que o fogo se propague. Em certo vídeo que mostra um incêndio de ônibus em Paris, vê-se que — dentro de segundos — o fogo inicial se transforma em fogo no teto, extrapolando a largura do veículo. Quase imediatamente, partículas incandescentes caem, em profusão, em ambos os lados. Parecia que marmanjos haviam subido ao teto do ônibus e decidido soltar não estrelinhas, mas 'estrelonas'. Um belo e aterrador espetáculo. Um vídeo que pode trazer angústia ante a possibilidade de haver ocupantes no ônibus, pois não poderiam sair ilesos, face a ameaçadora 'chuva' de partículas de fogo. Felizmente, não havia ocupantes.
Um simples carro elétrico estacionado numa garagem subterrânea representa uma ameaça. Um ocasional incêndio se propagaria aos carros a combustão que, nas espremidas garagens atuais, podem soar como uma extensa promiscuidade veicular. Não se sabe da resistência da estrutura de prédios a eventuais explosões de tanques de veículos; pode ser calcinada, devido a muito alta temperatura. Há prédios em que a saída da área habitacional se dá sobre metros e metros de lage abrigando carros no subsolo, até atingir a portaria, no limite da calçada. Às pessoas fica o desafio de uma caminhada sobre a lage, em que a superfície superior, por onde se deve caminhar, pode estar a mais de duzentos graus centígrados. Penetrar na garagem, nem pensar. Um incêndio de uma bateria de lítio produz um enorme volume de gases tóxicos.
A cada noite em que um carro elétrico pernoita num estacionamento, há uma chance muito pequena de pegar fogo. Muitíssimo pequena. Mas não nula. Agravada quando do carregamento da bateria. É como num avião. A chance de acidente fatal é baixíssima, mas não nula. Examine-se, então, a situação dos que correm praticamente idêntico risco, quase todo dia, representado por um carro elétrico na garagem do subsolo do prédio em que residem ou trabalham.
Quem paga aos que habitam prédios com garagem subterrânea para aceitar o risco de abrigar carros elétricos? É como se toda noite corressem o risco de embarque num voo Air France 447, Rio-Paris. Sem a compensação de uma "turistada" no Velho Mundo. E o veículo nem precisa ser um carro. Numa província chinesa, no ano passado, uma simples bicicleta elétrica guardada num apartamento pegou fogo. Mortos, feridos e perda do prédio.
Adriano Dias é doutor em Economia e engenheiro mecânico, professor titular da UFPE, aposentado.
Tarcísio Patricio é economista, Doutor em Economia. Professor da UFPE, aposentado.