OPINIÃO

Um puxão de orelhas

Nossa alma imortal busca incessantemente o bem, a verdade e a beleza, que não está no mundo sensível. Eu perdi meu atalho. Espero que não percas o teu.

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ERMANO MELO

Publicado em 30/05/2024 às 0:00 | Atualizado em 30/05/2024 às 11:19
Ilustração artigo Ermano Melo
Ilustração artigo Ermano Melo - ARQUIVO PESSOAL

Era 01 ano de sua morte. Minhas irmãs me convocaram para a missa das 7h. Não fui. No consultório, recebo uma família não usual, pois o jovem, com menos de 20 anos, exibia um grande escapulário no peito.

Ao olhar para Santa Terezinha, que D. Maria Pia lá havia posto há 13 anos, falou que era devoto; contei que D. Pia também. Esquecemos da oftalmologia. Já desconfortável, falei da paixão da minha mãe pelo canto gregoriano. Para quê? O rapaz soltou a voz no canto divino. Contive as lágrimas. Achei pouco, tentei melhorar a situação mostrando o meu escapulário. A mãe dele perguntou se era entronizado. Não era.

Pela voz daquela senhora, D. Pia puxou minhas orelhas: entronizar o símbolo e ir mais à missa. Esperei o fim do dia e a solidão para chorar. E aqui estou - suplicando as bençãos de Padre Humberto.

Sempre busquei explicações para a existência. Achava pouco ter fé e seguir o que meus avós, minha mãe e meu tio Eloir ensinavam. Fui à mitologia, à literatura, à arqueologia, à história, à filosofia, às ciências, às artes e à medicina. Só não fui à missa e à bíblia - ou seja - perdi o atalho.

Tudo para entender que o paganismo grego preparou para Cristo; que Dante viu Beatrice como a mãe de Deus; que, segundo Titus Kennedy, Jesus e seus milagres têm registros arqueológicos; que Flávio Josefo descreveu o nazareno "mágico"; que Sócrates provou a imortalidade da alma com a razão; que Roger Scruton questionou: se as leis da física criaram o mundo, o que criou as leis da física?

Também para ver que ninguém explica o Big Bang; que perante a Pietá ou a capela Sistina tu sentes a centelha divina; para ver que Gemma, a menina cega, pois nasceu sem pupilas, passou a ver após o milagre de Padre Pio em 1947 - e continuou sem pupilas; para assistir no YouTube o relato de Vicky, a cega de nascença que, em sua quase morte, enxergou tudo nos mínimos detalhes.

Pensava eu que havia só o Deus do "hiato"- que vai diminuindo à medida que a ciência aumenta; que Jesus era só um homem especial; que os antigos eram místicos. Talvez culpa de Descartes: penso, logo existo. Não! Tu pensas porque já existias, e continuas a existir sem pensar, como minha mãe me provou.

Imagina que quase todas as tuas células de hoje não existiam há 7 anos. Tua matéria é toda diferente de quando eras criança. Todavia, sabes que és o mesmo. A mente não explica isso, pois fragmentária. Só a consciência imortal permite a unidade no tempo.

Será que és tão arrogante para pensar que essas dúvidas não atormentaram grandes mentes? Maiores que a tua? E Santo Agostinho? És mais inteligente que ele? E o mais sábio dos santos e mais santo dos sábios? Sim, São Tomás de Aquino, que ligou Aristóteles ao cristianismo. Tentes ler a Suma Teológica; como eu, sentirás tua ignorância e não passarás da primeira página.

Vê, agora, em tempo real, a conversão de Jordan Peterson. E o maior dos ateus? Richard Dawkins já começou a recuar, se diz um católico cultural, seja lá o que seja isso. Por quê? Porque a única certeza é a dor. Ela virá, em algum momento, avassaladora. E a razão não a explicará.

É melhor tu creres. Porque já vives como se crente fosses. Tu tirarias o alimento da tua boca para um faminto; arriscarias tua vida para salvar uma criança; tu não obedeces aos instintos cegamente, pois tens senso moral; tu sofres com a dor alheia. De onde vem isso? Não das leis da natureza, não da seleção natural. Tu já acreditas em Deus e não percebes.

Desculpa a evangelização, mas também é a minha própria. Alguns nascem prontos. Por isso as imagens dos santos - para expor nossa ignorância e orgulho. Somos peixes de águas profundas, que nunca viram a luz. Os santos são golfinhos, que se regozijam ao saltar e ver a beleza divina. Comparação fraca, mas perdoas-me, não sou Padre Antônio Vieira, nem Camões; muito menos Dante - o maior de todos.

Ermano Melo, oftalmologista

 

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