O PL 1.904 e a gaveta da vergonha
O PL 1.904/2024 emprega parametrização temporal que não consta em lei alguma e ao fazê-lo fixa que qualquer interrupção da gravidez é homicida
Pautas que conversam de perto com os alicerces do texto constitucional, a exemplo do alicerce da dignidade, não devem ter abordagem destoante da boa técnica e da ciência jurídica, ou se perdem ao longo do caminho, tornando-se irreconhecíveis. Daí porque faz sentido a reação negativa de milhares à aprovação pela Câmara dos Deputados, em tempo recorde, do Projeto de Lei 1.904/2024, que equipara o aborto de gestação acima da 22ª semana (a denominada por alguns de “viabilidade fetal”) ao homicídio, incluindo-se os casos de estupro e de anencefalia.
O “recado” da aprovação parece claro: você, mulher, precisa entender que seu destino é suportar calada as consequências da violência sexual; é carregar conformada o fardo do trauma; é perder em nome da etiqueta machista a sua autonomia sobre o próprio corpo e não reclamar por isso, pois o Estado passará a não lhe ouvir; é engolir o choro pelo retrocesso decalcado do vexame do desfazimento do Roe v. Wade na vizinha Nação norte-americana; é aceitar que conviver com a “vontade de Deus” encerra a sua única opção, prosseguindo com a gestação indesejada, ou só lhe restarão as caldeiras fumegantes do “inferno”. Por mais surrealista o cenário, e ele o é, a chama da esperança não foi apagada. Há luz no fim do túnel. No caso, nas consciências dos que se dispõem a salvar a alma da Constituição contra as ofensivas incansáveis do terraplanismo.
O PL 1.904/2024 emprega parametrização temporal que não consta em lei alguma e ao fazê-lo fixa que qualquer interrupção da gravidez é homicida exaurido esse hiato. Cuida-se de peça legislativa não só inconstitucional, como eticamente lastimável, ao desprezar – de forma cruel – que proteger a dignidade humana é proteger sua autodeterminação. Ora, se o processamento da gestação é no corpo da mulher, por que não ser sua a decisão sobre manter a gestação, principalmente diante de risco à sua vida ou da precedência de uma agressão sexual? Por que essa escolha deve passar a pertencer ao Estado, quando deste é, nos povos modernos pelo menos, o papel de amparar a mulher, nunca o de reviolentá-la?
Quando nos idos de setembro de 2023 julgou a ADPF 442, o STF deliberou que os arts. 124 e 126 do Código Penal colidem com a CF/1988. E assim o fizeram os senhores Ministros compreendendo exatamente pela desproporcionalidade de se atribuir pena de detenção à gestante caso provoque o aborto ou autorize alguém a fazê-lo, e também para quem ajudar ou realizar o procedimento.
De outro viés, no Brasil, 75% das mulheres vítimas de estupro possuem menos de 14 anos de idade; mais de 70% dos casos de estupro acontecem dentro de casa, sendo autores os próprios parentes; e um estupro é cometido a cada 8 minutos. Deparando-nos com semelhante cenário de terra arrasada, diremos que a resposta está em criminalizar a vítima?
Combatente de primeira hora em prol dos direitos humanos e da letra constitucional, a OAB aprovou parecer onde deixa clara sua repulsa de testemunhar que “todo avanço histórico consagrado através de anos e anos de pleitos, postulações e manifestações populares e femininas para a implementação da perspectiva de gênero na aplicação dos princípios constitucionais” possa ser suplantado por “uma linguagem punitiva, depreciativa, despida de qualquer empatia e humanidade, cruel, e indubitavelmente, inconstitucional”. Na mesma linha,
colho da professora da UFRGS e Juíza do Trabalho Valdete Souto Severo (Brasil de Fato, 14/06/2024) a afirmativa de que a “suposta cruzada moral” em tela possui “alvo certo”, que “são os corpos das meninas e das mulheres pobres, negras, periféricas”, à imagem e semelhança da “política de combate às drogas” e que encerra, na realidade, mais uma “técnica de controle social direcionada, uma política de dominação de classe, cujo recorte de raça e de gênero é tão óbvio, que cansa um pouco ter de referi-lo”.
Portanto, NÃO, um sonoro e tonitruante NÃO, ao PL 1.904/2024, e SIM, um ressonante e corajoso SIM, à premissa de que o aborto é questão social e não crime. Eis o que importa aos olhos da Constituição e o que merece, com luta, perseverança e mobilização, já que os bons não podem silenciar, prevalecer. Nada está perdido.
Gustavo Henrique de Brito Alves Freire, advogado