Uma simples queda
Quando tive alta, alguém me disse que "agora era comigo", em relação aos cuidados, e percebi claramente o significado do termo EMPREENDEDOR DE SI!
Sou colaborador semanal deste JC há quase 20 anos e raramente deixei de enviar minha colaboração semanal. Mas, na semana passada sofri um acidente doméstico (resultado de uma hipoglicemia) que me levou por três dias à UTI. Como não gosto de deixar que experiências importantes – inclusive estas que nos aproximam da morte! - passem em branco, sem um exame mais atento, vou contar pra vocês os passos importantes daquele acidente e nomeá-los de acordo com o vocabulário que aprendi, nesses últimos tempos, no mundo acadêmico, cada “etapa” correspondendo a uma etiqueta muito conhecida de meus colegas que usam e abusam desses termos.
Comecemos: Perdi os sentidos no banheiro de minha casa e tive um momento DISRUPTIVO em que algo foi quebrado: minha testa;
Logo depois, voltei a mim (não me lembro de ter “saído de mim” em algum momento!) e provei para mim mesmo que sou bastante RESILIENTE: vou ao fundo do box do banheiro e volto de lá renovado em energias;
Bati a cabeça violentamente na pia, que me abriu um fundo corte com uma fissura no osso frontal, por onde vi escorrer - junto com o sangue- algumas de minhas ideias, pensamentos e reflexões: foi minha primeira experiência de PENSAR FORA DA CAIXINHA. Fiquei muito feliz!
Fui conduzido por uma ambulância do SAMU (profissionais muito competentes a atentos, diga-se, a quem agradeço a presteza e rapidez do atendimento) e numa maca, ali no meio da minha rua, senti-me um verdadeiro PROTAGONISTA!
No hospital levei 5 pontos na fronte e um deles, percebi depois quando fiz um curativo, era um PONTO FORA DA CURVA. Que fazer!
No Hospital, vários profissionais perguntaram-me o que tinha acontecido: repeti a história diversas vezes, sem grandes variações, e percebi claramente que ali, exatamente ali, eu estava exercendo meu LUGAR DE FALA;
Fiquei, na UTI, ao lado de um senhor de 83 anos que também sofrera uma queda em casa: Ali eu experimentei um pouco de EMPATIA e até de SINERGIA (que eu não sei o que significa!);
O que eles, aqueles profissionais, queriam, era que eu apresentasse uma NARRATIVA coerente e que pudesse apontar para as causas de meu acidente: como narrar um momento disruptivo!
Confesso que estava cercado (e amarrado a!) de um aparato tecnológico hospitalar que vi raras vezes em minhas “visitas” a esses lugares: trata-se realmente de um aparato de CLASSE MUNDIAL;
Quando tive alta, alguém me disse que “agora era comigo”, em relação aos cuidados que deveria ter com minha própria saúde: percebi claramente o significado do termo EMPREENDEDOR DE SI!
E, finalmente, vejam caríssimos leitores - que volto a reencontrar com muito prazer nas páginas deste JC- toda a POTÊNCIA contida num banal acidente doméstico: a possibilidade de descrevê-lo com uma viciada linguagem acadêmica cuja capacidade de denotar ou conotar realidades se esvazia exatamente na repetição abusiva de seu uso, muitas vezes impensado e automaticamente repetitivo.
A linguagem constitui nossa possibilidade de pensar e de submeter a realidade à investigação pela consciência, de nomear tal realidade (que agora passa a “existir”) e torná-la apropriável subjetivamente, tomarmos distância crítica e cotejar o que pensamos, dizemos e julgamos com a pluralidade de outras opiniões. Mas o uso contínuo e recorrente dos mesmos clichês apenas apontam, não para uma decadência da linguagem, mas para uma derrota do pensamento!
Confesso que não quero levar outra queda. Dói mais do que o uso abusivo de clichês!
Flávio Brayner é professor Emérito da UFPE e Visitante da UFRPE