Os embusteiros

Existem motivos para preocupação com os interesses financeiros na ciência. A pesquisa, antes entregue às universidades, hoje está com a indústria

Publicado em 05/07/2024 às 5:00

Questionar sempre. Essa é a essência da ciência, mas soa estranho desacreditar as evidências obtidas a partir dela.Pessoas que tiveram a sua azia aliviada por um comprimido, não percebem que foram anos em laboratório para o mundo entender que existe uma bomba de prótons, no caso hidrogênio, lançando esse elemento ao encontro do cloro, formando o ácido clorídrico no estômago. Que depois disso foram muitas pesquisas até a produção em larga escala de substâncias capazes de bloquear aquela bomba, reduzindo a formação do ácido, aliviando a azia, cicatrizando a úlcera, recuperando o esôfago ferido pelo refluxo. Um antiácido corriqueiro, mas demandou décadas de estudos.

O alívio do queimor não é capaz de refrescar a mente de quem costuma pôr em dúvida as conquistas da ciência. Preferem formular e disseminar conceitos sobre doenças e tratamentos sem nenhum fundamento, aproveitando-se do fato de que é mais fácil notar um ou outro efeito colateral de um medicamento e condená-lo, do que perceber quantos são salvos por fazer uso dele.

Com as facilidades das redes sociais, proliferam opiniões a respeito de fortalecimento da imunidade, como se o complexo sistema de defesa humano gostasse de suplementos. Pareceres com ares doutorais discorrem sobre vitaminas abrindo “as portas” de microrganismos para entrada de medicamentos anedóticos e até partidários. Alimentos são demonizados sem dar ouvidos ao sertanejo que, fazendo deles a base de sua dieta, é antes de tudo um forte. Suplementos banais, por vezes contaminados por anabolizantes, analgésicos ou hormônios, passam a ser considerados vitais. Multivitaminas são recomendadas para pessoas saudáveis como se fizessem bem. Acusa-se a flora bacteriana normal de vários crimes, sem provas. Hormônios são endeusados ou demonizados ao sabor sabe-se lá do que. Ignoram que o alívio de um sintoma pode paradoxalmente ser um sinal de perigo.

Continuando com o exemplo do antiácido, se o suco de uma fruta aliviar a azia não significa que deve ser recomendado, pois se a melhora ocorrer às custas de mutações e metaplasia na mucosa do esôfago, a tornará mais resistente ao ácido, mas às custas de um risco aumentado de câncer. A lógica simplória nem sempre se aplica.

Informações falsas são disseminadas e os seguidores as incorporam, como uma religião. A fé remove montanhas e realmente fortalece, como já foi demonstrado cientificamente, mas as prescrições norteadas por premissas falsas, não.

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Bom para visão, para cicatrização, para a imunidade, para o fígado, para o sangue, para o sexo, os rins, a pele, as unhas, para disposição geral, a cura de todos os males era atribuída ao óleo de um peixe do Amazonas vendido nas feiras Brasil adentro. Existia o “Tapia”, um passante que confirmava as virtudes do produto, reforçando a propaganda. Na infância, ficava horas na feira ouvindo admirado os milagres do óleo de peixe. Hoje os “Tapias” estão nas redes sociais, bem mais convincentes e abrangentes. Os “tapiados”, coitados, são em número bem maior.

Claro que existem motivos para preocupação com os interesses financeiros envolvidos com a ciência. A pesquisa, antes entregue às universidades, hoje está sob responsabilidade da indústria que além de pesquisar, produz e comercializa, gerando a mais desumana das desigualdades: os que podem e os que não podem ter acesso aos avanços da ciência. Cedo ou tarde o mundo vai se debruçar sobre esse absurdo, quem sabe dando um destino mais nobre à montanha de dinheiro gasta nas guerras, para destruir e matar.

Enquanto isso, é bom saber que, além de tudo, tratamentos sem base científica têm um custo elevado. O maior deles é o dano à saúde, mas aqueles potinhos anedóticos com sua mistura exótica de substâncias também não são nada baratos. Melhor seria voltar à feira e comprar o folclórico óleo de peixe, desde que também não seja falsificado.

Sérgio Gondim, médico

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