"Entre Aquiles e Alice"

....um libelo inflamado e poético contra uma linguagem viciada - a derrota do pensamento- e suas ameaças para a eliminação do Outro.

Publicado em 22/07/2024 às 10:31 | Atualizado em 23/07/2024 às 9:42

Em 1951, Albert Camus publicou “O mito de Sísifo”, sobre o titã desobediente condenado a rolar uma pedra montanha acima e vê-la desabar montanha abaixo: um trabalho insano e infinito! Trata-se de um ensaio sobre o ABSURDO e, mais do que o absurdo de uma tarefa incompreensível, o absurdo da própria existência.

Há, na novela camuseana, um momento intervalar, situado entre a chegada da pedra ao alto da montanha e o momento em que ela começa a cair. Esse rápido intervalo, Camus chama de CONSCIÊNCIA. Mas, consciência de quê? Consciência do absurdo do existir e esse absurdo tem, aliás, uma característica específica: ele corresponde a uma “desfamiliarização” do mundo, um mundo tornado estranho, incompreensível, em que os conceitos, as palavras, o léxico que usamos para denotar ou conotar já não são mais capazes de fazê-lo. E, assim, perdemos nossa “contemporaneidade”! O absurdo camuseano é provocado quando o mundo deixa de ser nossa casa, perde sua familiaridade, e os conceitos que usamos para descrevê-lo ou avaliá-lo não têm mais sentido.

E para não enlouquecermos, tentamos (em vão!) fazer com que o MUNDO ainda caiba em nossas velhas categorias: é essa a função do clichê, da frase batida, do jargão, dos “sentiers batus”. Nesse exato sentido, este é um livro “camuseano”: uma revolta contra certo uso da linguagem!

A professora Rafaela não pretende “salvar” ninguém pela educação, não quer “libertar” nenhum oprimido ou nos redimir de qualquer forma de “alienação”, “conscientizando-nos”. Ela apenas mostra que a Literatura dispõe de um poder que vai além dos discursos sociológicos, políticos ou psicológicos que povoam a educação contemporânea: ela -a Literatura- é uma forma de “interrupção” heideggeriana de nossa forma de pensar, sem o que, é o próprio pensamento que se vê num impasse. Isso significa que a repetição abusiva de velhos conceitos pedagógicos é apenas uma forma fácil de “refamiliarização” com um mundo tornado incompreensível e absurdo. Sem a produção de uma nova linguagem conceitual, estaremos condenados a “rolar pedras” em montanhas absurdas, e permitir que os “nazismos” atuais (em suas diferentes formas e conteúdos) digam o “que é a realidade” “quem são os outros” e, finalmente, “quem deve ser eliminado”! Foi nesse sentido que o crítico cultural Georges Steiner disse que o Nazismo, mais do que uma questão política, era uma questão de linguagem.

Para mim, pessoalmente, tem algo de estranho em ler um livro que me cita com frequência e trabalha a partir de ideias que elaborei há alguns anos. Estranho se ver pelos olhos dos outros a respeito de uma compreensão do EDUCATIVO e sua linguagem. Mas é extremamente confortante e inquietante ler “ENTRE AQUILES E ALICE (SOBRE LITERATURA E EDUCAÇÃO)”, da professora Rafaela Celestino: um libelo inflamado e poético contra uma linguagem viciada - a derrota do pensamento- e suas ameaças para a eliminação do Outro.

Flávio Brayner,  professor Emérito da UFPE e Visitante da UFRPE

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