O berimbau tocou parabéns

Para o grande percussionista, caminhar emitia o som de roçar os pés no chão. Não é muito diferente a inspiração que vem de uma carícia da brisa

Publicado em 04/08/2024 às 5:00

Na origem, o instrumento de corda por aqui chegou trazido pelos escravos angolanos com variadas denominações e foi batizado com o nome de berimbau. Independente de origem, da natureza do som musical e da animação de uma fascinante acrobacia que associa dança, luta e esporte, há um ponto de convergência indiscutível: a história do berimbau no Brasil se divide no antes e no depois de sua consagração universal pelo gênio musical de Juvenal de Holanda Vasconcelos, o saudoso Naná.

Se vivo estivesse, Naná completaria 80 anos no dia 2 de agosto de 2024, e nesse dia, o berimbau foi ouvido no espaço sideral, traduzindo o monocórdico Happy Birth Day para uma percussão melódica arrebatadora, miscigenada pelo elemento do jazz, pelos instrumentos eletrônicos e enriquecidos por uma mente prodigiosa que conquistou a marca insuperável de oito Grammys.

Pessoalmente, era uma criatura encantadora. Tive a coragem de superar a inconveniência da tietagem, e neste mesmo canto de página, relatei como me aproximei do tímido (título do artigo “Afinal, quem é Juvenal?”) e solidário Naná no Parque da Jaqueira para repartir uma cachacinha sabática regada ao caldinho de feijão. Foi o suficiente para estabelecer uma relação afetiva que descrevi noutro artigo (“O maracacéu”) no triste dia do seu falecimento (09/3/16): “Não éramos velhos amigos, mas nos tornamos amigos velhos para sempre”.

Primeiro, uma caminhada a passos sem sair do compasso regido pelo maestro implacável do tempo. Com as cautelas de não desafinar, administrava minha curiosidade sobre a saga daquele menino pobre da periferia de Olinda. De tanto bater nas panelas e caçarolas, recebeu de presente um bongô, maracas e um afoxé. Os pais amorosos, (seu Pierre, músico, e dona Petronila), mal sabiam que deram a Naná o passaporte musical para ganhar o mundo e conquistar a fama sobre a qual tinha uma frase notável: “Fama está na cabeça...cabeça de camarão”

Contou-me sobre o processo de criação dos “4 elementos”: um processo de extrema sensibilidade segundo o qual, dizia ele: “Eu toco o berimbau, depois transporto para os instrumentos, o primeiro instrumento é a voz e o melhor é o corpo”. Aí pude perceber que aquela caminhada era mais que um passeio para o corpo ou o cumprimento de uma recomendação clínica. Ele, como muitos pensadores, poetas, artistas, ativistas - Nietzsche, Rousseau, a movimentação peripatética de Aristóteles, as suaves passadas de Kant, as marchas pacifistas de Ghandhi, Henry David Thoreau - este último o mais notável exemplo de convicção e influência sobre o sentido filosófico do caminhar. Celibatário, deixa claro, no famoso livro Caminhando, que “casou com a natureza”.


Por sua vez, para o grande percussionista, caminhar emitia o som de roçar os pés no chão. Não é muito diferente a inspiração que vem de uma carícia da brisa. O sol é a estrela da manhã. Ardente. E se a gente apressa os passos, a respiração acelera, o coração bate mais rápido, árvores senhoriais abrigam pássaros viajantes, tudo em Naná promove a fusão do olhar e do escutar, pois, a vida é ritmo, som (melodia e harmonia vêm depois) porque começa no aconchego da vida uterina que é com o batuque de dois corações e, no primeiro ato, nascer, a saudação à mãe-natureza é o vagido, o som inaugural do humano que é um misto de saudade da plenitude e medo do desconhecido.

Pois bem, no dia dois de agosto, vozes saudosas dos amigos – ausência dolorida para Patrícia e Luz Morena – se uniram para, juntos, celebrar a vida, e nela enxergar a dimensão da imortalidade que somente a Arte e a Fé são capazes de iluminar.

Por fim, a toada da vida é uma percussão muito especial que se chama gratidão. É o amor retribuído à homenagem prestada, diz o texto projeto Ocupação Itaú Cultural (em cartaz de 17 de julho a 27 de outubro), a “Esse grande mestre da cultura brasileira e da música mundial”.

Viva Naná!

Gustavo Krause, ex-governador de Pernambuco

 

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