Disse, no final do artigo anterior, que a LIBERDADE passou, na Modernidade, a definir nossa condição humana. A liberdade não era apenas uma conquista externa (dominar a Natureza através da técnica), mas também dominar a natureza interna (nosso desejos e inclinações). Mas para fazer isso era necessário deixar que aquela natureza interna se manifestasse, era preciso respeitar aquilo que nós somos intimamente, valorizar a sinceridade e a autenticidade. Não para fazer aquilo que nos viesse à cabeça, mas para que, conhecendo o que somos intimamente, melhor conduzir nossas vidas para o que queremos ser (projeto existencial), sem precisar aceitar cegamente ou obedecer ao projeto dos outros. Não se trata de negar o que somos, mas de conhece-lo para orientá-lo. E, novamente, aqui, a tarefa da educação na construção da identidade começa a se modificar: ao invés de ser a ação de um adulto-educador que, de "fora para dentro", me força a ser racional para finalmente alcançar minha humanidade, agora, essa tal identidade é um trabalho de "dentro para fora", em que preciso me descobrir, ser sincero, espontâneo e autêntico, quer dizer, desvelar aquilo que está "naturalmente" dentro de mim (Rousseau), não para violentá-lo mas para encaminhá-lo para a vida social, onde ser livre significa encontrar um equilíbrio entre a expressão da minha vontade e a expressão da vontade dos outros (concepção liberal). A partir daqui, educar deixou de ser abandonar a infância (para se tornar adulto racional) e passou a ser preservá-la dentro de nós o maior tempo possível. Estávamos construindo uma outra IDENTIDADE.
AQUILO QUE OS OUTROS ESPERAM DE MIM...
Como vimos, a ideia de identidade vai se confundir com a imaginária existência de algo dentro de cada um de nós, algo escondido, único e particular que faz com que eu seja a pessoa que sou e não seja confundido com nenhuma outra. Identidade como verdade de cada um!
No entanto, aos poucos vai-se observando, sobretudo após o surgimento de uma variante da Sociologia (o Interacionismo Simbólico) e com a Psicanálise que, talvez, a nossa identidade não seja algo tão fixo e perene como imaginávamos, já que nós não estamos sozinhos no grande "teatro" de nossas vidas. E essa noção de "teatro" vai ter uma importância decisiva na constituição de um novo conceito de identidade (I. Gofmann).
Imaginemos, agora, que os indivíduos comecem a se fazer o seguinte tipo de questão: "Eu sei quem eu sou. Quer dizer, eu acredito que eu seja transparente a mim mesmo, mas, será que a forma como os outros me veem corresponde ao que eu sou realmente?". Aqui, foi introduzida uma fratura na ideia monolítica de IDENTIDADE. Nessa linha de interrogação é possível também se chegar ao seguinte: para ser o que "eu sou", eu passei por uma família que me educou dentro de certos valores que não escolhi; passei por uma escola que esperava de mim certos comportamentos e desempenhos; tenho amigos que esperam que eu me comporte em relação a eles de uma determinada forma, etc. Assim, eu observo que minha "identidade" não depende só de mim, como também em função do ambiente social em que me encontro, eu não me comporto da mesma maneira, não falo da mesma maneira, não me visto da mesma maneira! A partir daí eu posso começar a duvidar da estabilidade de minha identidade e me perguntar se ela, além de uma questão de "conhecimento" (eu sei quem sou), não seria também uma questão de "reconhecimento" (quero que os outros saibam quem eu sou e me respeitem). Aqui, a palavra RECONHECIMENTO tem um significado ambíguo, pois "reconhecer" é identificar em alguém traços que já nos são familiares; mas ser reconhecido pode significar também, ser valorizado: ambos os casos envolvem o OUTRO e, aqui, nós podemos dizer que a identidade passou a ser entendida como uma construção que envolve sempre os OUTROS, como eles me aceitam e veem e como eu quero ser aceito e visto por eles.
(Fim da segunda parte. Até a próxima semana)
Flávio Brayner, professor Emérito da UFPE e Visitante da UFRPE.