A phobocracia e o governar pelo medo

Assim, quem tem que ter MEDO DA CRÍTICA não é o "sistema": é aquele que dele participa; medo de exercer sua competência judicativa....

Publicado em 03/09/2024 às 0:00 | Atualizado em 03/09/2024 às 10:27

"Todas as culturas humanas podem ser decodificadas como mecanismos engenhosos e calculados para tornar suportável a vida com a consciência da morte". É assim que Z. Bauman ("O medo líquido") resume o conjunto e o sentido de nossas diferentes construções culturais. Mas, de quantos medos é feita nossa vida?

Não é difícil arrolar o conjunto dos nossos medos contemporâneos, sabendo, claro, que cada época, cada cultura constrói seus "medos" e as formas de ação defensiva às ameaças que ele supostamente emana. Medo do Inferno e do castigo eterno; medo do tirano; medo de uma vida inautêntica; medo de não ser bem sucedido; medo do desemprego; do desamor; da solidão; medo dos fascistas, dos comunistas, dos imigrantes, do Outro, dos diferentes e, claro, da morte (a soma de todos os medos)!

O medo funciona como instância de "governamentalidade" das almas quando se torna uma política de controle social das subjetividades, quando eu passo a avaliar minhas habilidades, competências, expectativas, desempenhos, performances... a partir de elementos adjetivos fornecidos por uma "política", ou o que podemos chamar de "PHOBOCRACIA": uma forma de governo baseada na produção sistemática e ativa do MEDO, ele mesmo gerador de insegurança, ressentimento, ódio, desinteresse civil, indiferença à sorte do Outro.

Recentemente, participei de uma banca de qualificação de doutorado na Universidade Estadual da Bahia, trabalho apresentado pela jovem pesquisadora Manuella Souza Ferraz, orientanda de meu amigo, o professor Artur Cestari, articulando três momentos ou instâncias no interior do mundo escolar e pedagógico de uma rede de ensino do Sudoeste da Bahia: o REGIME DE CONTRATAÇÃO dos professores (37 por cento deles sob contratação temporária sem nenhuma garantia trabalhista ou proteção sindical); a PERFORMATIVIDADE dos professores em sala de aula; e os MODOS DE SUBJETIVAÇÃO da condição professoral.

Quando essas três "instâncias" são articuladas num conjunto teórico agregador, podemos ver mais claramente como a PRODUÇÃO DO MEDO atingiu a ação pedagógica institucional: no primeiro momento (contratação) produz-se um tipo de medo específico - o "medo de perder o emprego", mesmo que subremunerado. Esse "medo" tem uma consequência política imediata: os "temporários" não podem ser sindicalizados e, assim, não participam dos movimentos de reivindicação da categoria. Aqui, o medo produz a desmobilização política. Na segunda "instância" (performatividade), produz-se o medo de não atender às exigências didáticas ou pedagógicas feitas, não diretamente pela "instituição", ou por pessoas identificadas como responsáveis pedagógicos (diretores, coordenadores, orientadores educacionais, etc.), mas por uma estrutura impessoal e anônima, burocrática e virtual que estabelece metas, meios, materiais didáticos, formação de quadros, acompanhamento pedagógico, sistema de avaliação e, claro, o poder final de eliminação daqueles quadros "inadaptados" ao sistema. Sistema, esse, em geral controlado por grandes conglomerados empresariais-educacionais. Aqui, o medo produz o espectro do ser performativo: em que o pensar foi substituído pelo executar. Breve: o hominídea Homo Faber (anterior ao Sapiens) está de volta, inclusive na profissão pedagógica! (Ai de mim! Logo eu que acreditei em "evolução das espécies", em "progresso do espírito humano", em "reino da liberdade"!).

Mas, nada disso funcionaria sem um "estratégia de subjetivação", quer dizer, sem que o discurso institucional inclusivo ofereça a cada um de seus egressos, membros, participantes, em qualquer que seja a função que exerça (especialmente professores), os adjetivos e predicados com os quais eles avaliarão seu próprio desempenho, e sua inserção no campo institucional: "-Sou ou não sou eficiente, produtivo? Atinjo ou não as metas estabelecidas? Que devo fazer para aceitar e participar "colaborativamente"(!) do sistema do qual participo (lembrando que não existe mais "trabalhador", "operário", "proletariado", "subalterno": existe o "colaborador", quer dizer, aquele que se avalia a si mesmo - com perdão pela redundância- com olhos e sentidos fornecidos pelo sistema inclusivo. Aqui o medo, é o medo de agir contra o campo institucional, avaliá-lo a partir de critérios "externos" a esse mesmo campo e poder contestar seus pressupostos e desmontá-lo. Assim, quem tem que ter MEDO DA CRÍTICA não é o "sistema": é aquele que dele participa; medo de exercer sua competência judicativa e analítica e se ver apagado, eliminado, cancelado, demitido... O neoliberalismo é uma Phobocracia!

Ai meu leitores, já estou morrendo de medo de ter escrito esse artigo!

Flávio Brayner, professor da UFPE e UFRPE

 

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