Passando a tocha: o Programa Bolsa Família e a Teoria da Justiça

Resta evidente que o Programa Bolsa Família gera equidade sem causar qualquer arranhão ao princípio de liberdade. Isso sim são boas notícias!

Publicado em 03/09/2024 às 0:00 | Atualizado em 03/09/2024 às 9:49

Nas Ciências Sociais e nas Ciências Econômicas abundam pesquisas sobre como recursos de toda natureza (capital econômico, social e cultural) são transmitidos de uma geração para a outra. Muitas publicações usam a metáfora da tocha sendo transmitida de uma geração à próxima, ou seja, os recursos sendo transmitidos intergeracionalmente, tal qual vimos durante as olimpíadas quando um atleta passa o bastão para outro.

Na década de 1970, o filósofo John Rawls publicou seu influente livro "Uma Teoria da Justiça". Nessa obra, ele defende que uma sociedade justa deve ser norteada por dois princípios fundamentais: a liberdade e a equidade. Desde então, muito tem sido escrito sobre o assunto, com corroborações e críticas de diversas naturezas. É importante destacar, no entanto, as contribuições de James Coleman, renomado cientista social, e de Amartya Sen, laureado com o Prêmio Nobel de Economia em 1998, cujas análises enriqueceram o debate sobre os princípios de Rawls.

Para Coleman, a teoria de John Rawls representa uma proposição normativa que, embora idealisticamente atraente, não é empiricamente realizável. Segundo Coleman, o dilema central reside na incapacidade de aplicar esses princípios em contextos reais, especialmente devido ao papel da família como uma fonte primordial de desigualdades socioeconômicas. A transmissão intergeracional de recursos, frequentemente citada nas análises contemporâneas de ciência social, ilustra como a família perpetua a desigualdade, colocando em xeque a viabilidade da equidade sugerida por Rawls.

Coleman sugere que, enquanto o Estado poderia teoricamente intervir para promover a equidade, tal intervenção esbarraria no primeiro princípio de Rawls, a liberdade, ao tentar regular as dinâmicas familiares. Assim, ele questiona se é possível conciliar a promoção da equidade com a preservação da liberdade individual, conforme proposto por Rawls, sem comprometer uma das duas dimensões. Será?

Por sua vez, Amartya Sem também critica o que chama de "transcendentalismo" da argumentação de Rawls, mas sua crítica vai em uma direção diferente daquela feita por James Coleman. Para Sen, a promoção simultânea dos princípios de justiça propostos por Rawls, a liberdade e a equidade, não é apenas possível, mas também observável em diferentes lugares do planeta e em diferentes momentos (como indiano, obviamente Sen conhece bem o famoso caso do estado de Kerala, localizado na costa oeste do sul da Índia).

Recentemente, pesquisadores brasileiros publicaram um artigo na renomada revista científica World Development. O estudo, intitulado "Social mobility and CCT programs: The Bolsa Família program in Brazil", reforça a abordagem proposta por Amartya Sen e contesta a hipótese de James Coleman, segundo a qual não seria possível promover a equidade sem infringir o princípio da liberdade. Este trabalho oferece evidências empíricas de que programas de transferência de renda, como o Bolsa Família, podem simultaneamente avançar a equidade social e preservar liberdades individuais.

Ancorado em evidências sólidas, o trabalho demostra que o Programa Bolsa Família consegue promover a mobilidade social ascendente dos filhos e filhas das famílias beneficiárias. Mais especificamente, o artigo mostra que cerca de 2/3 dos filhos e filhas de famílias beneficiárias, ao tornarem-se pessoas adultas, não precisam mais do Programa. Ou seja, o investimento feito em uma geração passa para a próxima na forma de recursos acumulados (capital econômico, capital social e capital cultural), configurando uma espécie de "porta de saída" da dependência da política social. O artigo ainda mostra evidências de que, principalmente em função da entrada no mercado formal de trabalho, os filhos e filhas das famílias beneficiárias geram retornos econômicos, principalmente através de contribuições previdenciárias e tributárias, para a sociedade, o que mostra que o Programa não é uma ação assistencialista, mas um investimento de longo prazo. Assim, resta evidente que o Programa Bolsa Família gera equidade (ao promover a mobilidade ascendente de indivíduos com origem socioeconômica extremamente baixa) sem causar qualquer arranhão ao princípio de liberdade. Isso sim são boas notícias!

Muita pesquisa ainda será necessária para compreendermos melhor esse fenômeno de "passagem da tocha", de transferência intergeracional de recursos familiares. Desde 2007, nosso grupo de pesquisa tem investigado quais são os mecanismos que explicam esse processo virtuoso de promoção da equidade. Em breve, teremos novas publicações a respeito. Aguardem as cenas dos próximos capítulos com um bolo de rolo e um café sem açúcar, por favor, porque doce já basta a vida.

 

Jorge Alexandre Neves, UFMG e UFPE

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