OPINIÃO | Notícia

A esquerda chegou ao fim?

Nossa Esquerda acreditou que tudo se passava pela "consciência", enquanto a Direita investiu naqueles baixos afetos de que somos todos portadores.

Por FLÁVIO BRAYNER Publicado em 22/10/2024 às 0:00 | Atualizado em 22/10/2024 às 8:49

Tenho ouvido e lido repetidos clamores de que a "esquerda" chegou ao fim, não tem mais nenhum futuro, esgotou suas possibilidades políticas, afastou-se de suas bases e perdeu o substrato social que a sustentava. Além do que, as utopias que alimentou não apenas não se realizaram como conduziram a formas muitas vezes tão tirânicas quanto aquelas que criticava (basta pensar nos milhões de mortos do stalinismo durante a coletivização forçada do chamado "Terceiro Período") e, como conclusão, resta-nos uma política morna de centro-esquerda, mistura de social-democracia com neoliberalismo para evitar o colapso ideológico e a ascensão irresistível da extrema direita! Durante muito tempo, ecoou o apotegma de Sartre dizendo que "o Marxismo era a filosofia insuperável de nossa época" (porque a exploração e a alienação produzidas pelo capitalismo não tinham sido "superadas"!). E há quem defenda, hoje, que "ser de esquerda" seria, antes de qualquer coisa, uma atitude moral (com implicações políticas): ser contra as injustiças e as desigualdades sociais.

Acho que o buraco é mais profundo!

Desde que as chamadas Filosofias da História aceitaram a divisa iluminista do "aperfeiçoamento" do homem, como indivíduo e como espécie, seja como "processo" de humanização (via educação, por exemplo), seja como progresso das instituições (o Estado hegeliano como encarnação da Razão), que "ser de esquerda" - a expressão da moda é participar do "campo progressista"- é um entendimento de que o HOMEM, - diferentemente dos outros seres que rapidamente, depois de nascer, ficam prontos- nós, humanos, somos aqueles que se revoltaram contra si mesmos, não aceitando nem as condições sociais que nos forjam, nem a educação que recebemos, nem o passado que herdamos, nem os futuros que nos prometeram, nem a consciência que temos, nem o tipo de liberdade que preconizaram, nem as diferenças que se transformam em desigualdade e em hierarquias. O problema é que, como os Santos cristãos, os modernos viveram de "promessas" seculares que esperavam ver realizadas não mais num LUGAR qualquer (Utopia) mas no TEMPO: o futuro! Nossa esquerda é, no fundo, agostiniana. E, diria mais, calvinista: uma profunda crença na ação sobre si mesmo (adquirir um tipo de consciência específica, como a "consciência de classe" ou a "consciência crítica") como instrumento de redenção e a ação revolucionária como sinônimo da Graça. Karl Löwith dizia que o marxismo era uma história da salvação em linguagem econômica!

Convenhamos que nossa época é uma "época de liquidação", época que desmontou aquelas promessas de felicidade que a modernidade nutriu: acreditávamos numa HISTÓRIA que não era mais as realizações dos grandes heróis, mas um tempo processual quando, finalmente, o "Humano", ainda não realizado, se faria: nós não TÍNHAMOS apenas uma História, agora nós poderíamos FAZÊ-LA (a gente falava "tomar as rédeas da História nas mãos"!). E para isso nós contávamos com uma ciência da história cujas Leis teriam sido descobertas pela filosofia pós-iluminista e garantiria a realização daquele ideal (Condorcet, Michelet, Hegel, Kant, Marx...). Acreditávamos num processo "dialético" em que as contradições (Tese e Antítese), em suas sucessivas "negações", se superariam num terceiro momento (Síntese) sempre superior às etapas anteriores, até que os "frankfurtianos" acharam que era melhor a gente ficar no momento só "negativo". Acreditávamos numa figura especial chamada SUJEITO, detentor de uma consciência cognitiva e moral, em torno de quem girava o mundo, um MUNDO não apenas conhecível mas também dominável pela ciência e pela técnica, cujo desenvolvimento nos livraria do fardo do trabalho. Aliás, ninguém duvidava de que o Sujeito da História era a Luta de Classes! Até que veio um francês meio maluco (ele até matou a mulher estrangulada!) pra afirmar que luta de classes não é Sujeito, é RELAÇÃO e relação não é sujeito!

Não tínhamos nenhuma dúvida de que a educação libertava: das ordens tirânicas, do obscurantismo, do passado, das autoridades dogmáticas, do opressor que nos habita, da ideologia dominante (embora acreditássemos, por muito tempo, que a Razão Libertadora pudesse estar encarnada num "Líder Supremo da Revolução", num "Guia Genial dos Povos", no "Grande Timoneiro"..., "líderes", aliás, certos de que os crimes que cometiam seriam perdoados pela... História (de novo!) que, no final, mostraria que o progresso do humano tinha um preço, ou, como dizia Stálin, "para fazer omelete tem que quebrar os ovos" (no fim, acharam que bastava apenas quebrar os ovos!). Ao mesmo tempo, uma esquerda que se negou a aceitar os crimes stalinistas, se recusou a participar do debate sobre o pós-moderno, que não aceitou a chamada "virada linguística" .

Depositávamos uma imensa fé na Ciência (inclusive numa ciência da história que "burguesia" nenhuma poderia negar suas Leis, assim como não se revoga a lei da gravidade: a realidade continuava a ser dialética!). Até que aqueles mesmo frankfurtianos mostraram que ciência e técnica estavam banhados em ideologia, e que Ciência era uma forma de poder sobre os próprios homens. Tínhamos certeza de que a sociedade seria salva por uma de suas classes (o proletariado) que, no entanto, não tinha consciência disso e precisava de um agente externo (o partido revolucionário) para conduzi-lo, senão o povão caía lânguido no discreto charme da burguesia ou da sociedade de consumo de massas!

Livramo-nos da história, do sujeito, do homem forjado pelo "humanismo", da classe operária, da utopia; assim como o Iluminismo nos livrara (ou pensara ter feito!) do tirano, da religião, do obscurantismo, da moral normativa, da autoridade tradicional... A esquerda tinha, além de uma "política" um escopo "moral": uma fé protoreligiosa na salvação do homem por ele mesmo; um sentido de solidariedade aos pobres e oprimidos e uma coragem política capaz de oferecer a vida por um ideal social que, eles mesmos, nunca veriam.

Parece que nos restou uma esquerda centrada na sustentabilidade, em políticas de distribuição de renda e governabilidade em meio ao assalto escandaloso das instituições pelo crime (muito bem) organizado, com crescimento econômico e, quem diria, com empreendedorismo. Uma esquerda mais voltada para políticas de "atos afirmativos" (tipo cotas) ou com a emergência e proteção de particularismos identitários do que com aqueles temas que tinham alto poder de mobilização nas camadas menos favorecidas e que, numa espécie de "revanche de Deus" foram recuperadas pelas denominações evangélicas. Nossa Esquerda acreditou que tudo se passava pela "consciência" (Lênin dizia que o Partido era a "consciência de um processo inconsciente!"), enquanto a Direita investiu naqueles baixos afetos de que somos todos portadores. Conclusão: sai a luta de classe e entra a luta pelo "sentido", uma luta semiótica em torno do sentido de realidade?

Como disse Göethe em seu leito de morte: "- Luz, mais luz!"

Flávio Brayner é professor da UFPE e da UFRPE

 

Compartilhe