Gustavo Krause: "Autocracia S.A."

Anne Applebaum consolidou seu prestígio internacional como historiadora e uma destacada pensadora sobre o fenômeno do autoritarismo

Publicado em 16/11/2024 às 13:57
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Anne Applebaum é uma consagrada jornalista (ex-editora das revistas The economist e The Spectator), escritora (prêmio Pulitzer, em 2003, com a obra Gulag – Uma história dos campos de prisioneiros soviéticos), que consolidou seu prestígio internacional como historiadora e uma destacada pensadora sobre o fenômeno do autoritarismo que tem ampliado seus domínios ao longo da história política contemporânea.

Em 1988, como correspondente internacional, na Polônia (onde veio a casar, em 1992, com Radoslaw Sikorski, Ministro das Relações Exteriores da Polônia, ex-membro do Parlamento Europeu), vivenciou, de perto, os estertores da guerra fria, o colapso da União Soviética, o que lhe conferiu experiência profissional com visão privilegiada sobre ascensão e declínio das democracias ocidentais bem como a crescente onda do populismo autoritário, que vem ampliando espaços na geopolítica global.

Sua aguda percepção rechaça, de plano, visões simplistas e conclusões apressadas, salientando que não há nações condenadas a viver sob uma ordem autoritária, tampouco existem garantias irremovíveis para a existência dos sistemas democráticos.

Vai além ao afirmar que, atualmente, não existe um campo democrático e um campo autoritário: “São vários tons de cinza. Há muitos países no meio e há muitas práticas autocráticas dentro das democracias. Há, também, países que são, nominalmente, parte do mundo democrático, mas se alinham, cada vez mais, às autocracias tentando importar seus métodos [...] cujo exemplo mais famoso é Viktor Orban, que é membro da União Europeia e da Otan e, mesmo assim, está abertamente alinhado com a Rússia em sua política externa” (Entrevista na Folha de São Paulo, Edição de 04/11/24).

No livro O Crepúsculo da Democracia, o subtítulo oferece ao leitor mensagem central do autoritarismo: seduz e, ao mesmo tempo, desfaz os laços de amizade em nome da política.

O ponto de partida é o relato de uma prosaica festa de confraternização na passagem do século de uma centena de amigos e companheiros que, progressivamente, se deram às costas diante da possibilidade de divergir.

Em duas décadas, o contágio do ódio eliminou a possibilidade do pluralismo das ideias, ensejando a relação conflituosa amigo/inimigo. A autora sentiu na própria pele, por conta da origem judia, as chibatadas do antissemitismo.

Em seis capítulos, respaldada em fatos e nas lições da história, Applebaum, ao tempo que alerta para a escalada do populismo e autoritarismo no mundo, não subestima a força do movimento e aponta para as fragilidades das democracias, incapazes de superar e vencer o descontentamento, a insatisfação das pessoas com os rumos da vida moderna, as dramáticas mudanças sociais, demográficas e tecnológicas que alimentam o apelo salvador dos líderes autocráticos.

Como resultado da experiência profissional, estudos e reflexões sobre o fenômeno do autoritarismo, Anne Applebaum identifica um novo modelo de organização das forças que têm por inimigo comum a democracia ocidental: a Autocracia S.A.

Superado, como regra, o argumento da força deu lugar às formas mais sutis de destruição das instituições democráticas e ao contrário das alianças militares ou policiais de outras épocas e lugares, assinala a autora: “esse grupo opera não como um bloco, mas como um aglomerado de empresas unidas não pela ideologia, mas pela brutal e obstinada determinação de preservar sua riqueza e seu poder. É isso que chamo de Autocracia S.A.”

Acrescenta: “Em vez de ideias, os tiranos que lideram a Rússia, China, Irã, Coreia do Norte, Venezuela, Nicarágua, Angola, Mianmar, Cuba, Síria, Zimbábue, Mali, Bielorússia, Sudão, Azerbaijão, e talvez outras três dezenas de países compartilham a determinação de privar seus cidadãos de qualquer influência ou voz pública reais, de resistir a todas as formas de transparência ou prestação de contas e de reprimir qualquer um, no âmbito, doméstico e internacional que os desafie”.

O modus operandi da organização oferece aos seus membros poder, dinheiro e “algo menos tangível: a impunidade”. A rigor, esta rede ampla e diversificada, sob as bênçãos da Rússia putinista celebrou uma terrível aliança com o moderno casamento da cleptocracia com a ditadura que protege as tenebrosas transações no universo paralelo do circuito dos crimes financeiros. Todos os déspotas dos diversos continentes são corruptos, bilionários e solidários na luta contra os valores das sociedades abertas e democráticas.

De fato, a sólida e minuciosa narrativa se estende por cinco densos capítulos e revela uma realidade assustadora. A ambição dos ditadores é dominar o mundo. Na entrevista dada à Folha um dia antes da eleição de Trump, a autora não fez previsão. Talvez, pressentira a derrota.

E quando indagada quanto às formas de lutar pela democracia, enfatizou o ativismo democrático da cidadania e, no epílogo do livro, “Democratas Associados”, conclui com uma convocação: “Elas (as democracias) podem ser destruídas a partir de fora para dentro, por divisões e demagogos. Ou podem ser salvas. Mas somente se aqueles que vivem nelas estiverem dispostos a fazer o esforço de salvá-las”.

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