Paridade tem a ver com equidade e não apenas com números

Cargos no topo da pirâmide profissional têm sido, costumeira e abundantemente, destinados a homens brancos. Numa prática chamada tokenismo

Publicado em 10/12/2024 às 5:00
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A eleição da chapa encabeçada por Ingrid Zanella e Schamkypou Bezerra para a presidência e vice presidência, respectivamente da OAB-PE, para o triênio 2025-2027, com 11.841 votos, é uma conquista tardia, mas, até por isso mesmo, digna das mais entusiasmadas comemorações. Pela primeira vez, em 92 anos de fundação, os membros da instituição que regula a categoria no estado de Pernambuco escolheram uma mulher para exercer o cargo máximo, aliás, uma dobradinha de mulheres. Só agora. Não lhes faltam créditos para tanto: ambas são professoras, esculpiram suas carreiras desbravando fronteiras nas áreas do direito civil, marítimo e trabalhista, alterando paradigmas num cenário hegemonicamente masculino.

A hegemonia masculina em posições de comando não encontra respaldo nos números, esses, sim, mostrando que existe um equilíbrio quantitativo de profissionais atuantes no setor. O Brasil tem atualmente 1,2 milhão de advogados, 50% dos quais são mulheres, proporção replicada em nosso Estado. Apesar dessa paridade de representação por gênero, as advogadas ganham, em média, 28,5% a menos que sua contraparte masculina. E mais: apenas 34,9% das mulheres são contempladas no quadro de sócios de capital, apesar de responderem por 57% dos profissionais na composição geral dos escritórios. O que existe e persiste é um desequilíbrio nas esferas de poder.

Cargos no topo da pirâmide profissional têm sido, costumeira e abundantemente, destinados a homens brancos. Numa prática que hoje se entende como tokenismo – quando representantes de um grupo minoritário são colocados em destaque para dar uma falsa impressão de inclusão – constatamos uma presença ligeiramente mais expressiva dessas minorias no segundo degrau, muito, mas muito raramente, no primeiro. Ou, como bem expressou a empresária Luiza Trajano, quando de sua participação em seminário no Supremo Tribunal Federal (STF), 10/12/2021: “As mulheres são sempre procuradas no período eleitoral para serem vice de um homem”. A própria Zanella cumpriu essa etapa, sendo vice na chapa OAB Mais Unida, para o triênio anterior (2022-2024), encabeçada por Fernando Ribeiro.

Mas o ápice dessa discussão está na recente escolha da vaga para o Quinto Constitucional. Previsto no artigo 94 da Constituição Federal de 1988, o Quinto Constitucional é um instrumento de democratização do Poder Judiciário, garantindo 20% das vagas de determinados Tribunais a integrantes do Sistema de Justiça, que não sejam da carreira da magistratura, a exemplo dos profissionais da OAB e do Ministério Público. Seguindo as determinações, a OAB-PE homologou sua lista sêxtupla destinada ao preenchimento da vaga de desembargador ou desembargadora do Tribunal de Justiça de Pernambuco (TJPE), aberta com a aposentadoria do desembargador Itabira de Brito Filho.

Com vistas a ampliar a diversidade de representatividade, as novas regras do edital exigem que a lista apresente uma mulher negra ou parda e um homem negro ou pardo entre os indicados (uma reserva de cotas de 30%) e que metade dessa lista traga nomes de mulheres (50% de reserva de cotas). A votação ocorreu na mesma data da escolha da presidência e vice-presidência da OAB, no dia 18/11/2024, facultada aos advogados inscritos e quites com a anuidade.

Quando falamos em “paridade” é muito fácil incorrer no erro de interpretá-la apenas pelo viés numérico. De modo que, contemplando as justas exigências de inclusão como forma de mitigar as lacunas de diversidade de representação, a lista sêxtupla deveria constar, obrigatoriamente, de uma advogada preta, negra ou parda, cuja representante é Ana Paula Azevedo (5.213 votos), um advogado preto, negro ou pardo, Paulo Artur Monteiro (976 votos) e mais uma mulher, sem especificação de raça, cabendo a indicação à mais bem votada por seus pares, Adriana Caribé (6.273 votos).

O Conselho Seccional da OAB-PE entendeu que os outros três nomes a complementarem a lista deveriam ser apontados não pelo critério superior de votos, mas pela mal interpretada paridade, criando a necessidade de igualdade numérica de gênero, quando, ao final da composição, homens e mulheres estivessem em mesmo número: três homens e três mulheres. Se houvesse prevalecido o critério “mais bem votado”, o resultado teria trazido a indicação de quatro mulheres e dois homens. Na prática, fora criada a cota para homens brancos que são maioria no tribunal, lugar onde, corretamente, busca-se a igualdade de gêneros.

Obviamente a questão aqui não se refere às qualificações dos profissionais apontados como merecedores de terem seus nomes incluídos na lista sêxtupla, mas ao fato de que, mais uma vez, mulheres precisaram ceder a vez sob o argumento de uma paridade artificial e conveniente. O atraso na inclusão de representação feminina, nas altas instâncias jurídicas, pode ser constatado com uma simples verificação na lista de desembargadores do TJPE: de um total de 58 nomes, apenas quatro são mulheres. Seguindo os ritos, a OAB-PE apresentou, rapidamente, a lista ao TJPE, na quinta-feira 21/11, que se encarregará de encurtá-la para três indicações. A lista tríplice será enviada à governadora Raquel Lyra que, por sua vez, escolherá o novo desembargador ou a nova desembargadora.

A equidade fora sublimada, mais uma vez, por uma interpretação convenientemente equivocada do que seria paridade. Busca-se a justa divisão, não a perpetuação de uma injustiça. Esperamos, com fervor, que a nova presidenta da OAB/PE nos represente e nos iguale em condições.

Gisele Martorelli, advogada

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