Um "ódio à leitura"? (II)
Apenas quis mostrar a vocês, Leitores (as), que me acompanharam até aqui, que LER significa muito mais do que ser alfabetizado e ter um livro
Ao terminar a primeira parte deste artigo, na semana passada, afirmei que o ódio à leitura era coetâneo do ódio à democracia: se a leitura nos confronta com o mundo, ideias, tempos, pessoas e, a partir desse confronto individual e solitário, podemos nos modificar a nós mesmos, a Democracia faz isso de forma coletiva e institucionalizada, onde nós nos damos a possibilidade de transformar nosso destino social a partir do confronto com o Outro.
Não preciso, no entanto, lembrar que a relação entre Democracia e Saber nunca foi tranquila, ao ponto de que, até recentemente, quem não sabia LER não participava do jogo democrático. O problema, claro, é saber se a Democracia se qualifica com os LEITORES (que não são os simples “alfabetizados”), se os leitores qualificam a DEMOCRACIA, ou se não há nenhuma relação entre Iluminismo (a Razão reflexiva como norma de vida) e servidão.
Creio que precisamos definir com maior precisão o que estamos chamando de “leitores” e o que significa a “perda” de 6,7 milhões deles em apenas dois anos. “Perda”? Como quem “perde” um livro? Claro que não: o Brasil PRODUZIU 6,7 milhões de “desleitores” (ex-leitores que abandonaram o hábito!)! Mas não o Brasil enquanto país, mas enquanto conjunto de injunções sociais, culturais, econômicas, religiosas, pedagógicas... que, em nossa específica época, não vê mais na leitura concentrada e qualificada (crítica) um instrumento de formação das almas (como subjetividade judicativa, pensante, cidadã). É esse modelo de subjetividade que está falindo e, com ele, a necessidade de leitura: não é a “derrota do pensamento” (Finkielkrault), mas a derrota (programada) do sujeito pensante!
Mas antes que enviemos para as cucuias esse envelhecido ATO DE LER, deixem-me, num exercício de melancólica lembrança, citar certas passagens do que grandes leitores/escritores disseram a respeito daquele ATO, de viva “voz” ou através de suas personagens, e sobre o valor da leitura e o que ela é capaz de fazer com o leitor.
STENDHAL (“O vermelho e o negro”): “Ele (o pai de Julien Sorel) percebeu seu filho sentado na soleira do teto a uns 5 ou 6 metros de altura. Julien lia(...) e essa mania de leitura lhe era odiosa, ele (o pai) aliás, não sabia ler. (...) O pai subiu no telhado e aplicou-lhe um tapa violento na cabeça (...). Julien tinha lágrima nos olhos, menos, por causa da dor física, que pela perda do livro que ele adorava, “Memorial de Santa Helena”. Passando, ele viu tristemente o riacho onde caíra seu livro. (...) Ele odiava seus irmãos e seu pai”.
SARTRE (“As palavras”): “Eu comecei minha vida como, sem dúvida, eu a terminarei: no meio dos livros. (...) Eu fui preparado, desde cedo, a tratar o professorado como um sacerdócio e a literatura como uma missão”.
FLAUBERT (“Madame Bovary”): “Com Walter Scott, mais tarde, ela se encantou com as coisas históricas, sonhou com sala de guardas, menestréis, castelos. Ela queria viver naqueles lugares que, sob o teto de ogiva, passava os dias(...), a observar vir do horizonte dos campos, um cavaleiro de plumas brancas galopando um cavalo negro”.
PROUST (“Pastiche et mélange”): “Não há, talvez, nenhum dia de nossa infância que nós tenhamos vivido plenamente como aquele que passamos com um livro preferido (...): um prazer divino. (...) Se nos acontece ainda hoje de folhear esses livros de então, é que mais do que como os calendários que guardamos dos anos passados, temos a esperança de ver refletida nas suas páginas as casas e os lagos que não existem mais”.
D. PENNAC (“Como um romance”): “E que eu te dobre as páginas (oh!, que ferida, essa visão da página dobrada!, mas é para saber onde estou na leitura!). Desde que um livro termina em nossas mãos, ele é nosso..., parte integrante de mim mesmo. É por isso que nós devolvemos dificilmente um livro emprestado. Não é roubo!”.
ROUSSEAU (“As confissões”): “Plutarco tornou-se minha leitura favorita, (...) e entre eu e meu pai se formou esse espírito livre e republicano, esse caráter indomável e orgulhoso, impaciente com a servidão que me atormentou toda a vida. (...) Eu me acreditava Grego ou Romano, e me tornava o personagem cuja vida eu estava lendo(...)”.
N. SARRAUTE (“Infância”): “Eis o momento esperado: o livro sobre a minha cama, abri-lo no lugar em que parei(...), impossível de parar, reter suas palavras, seus sentidos, seu aspecto, pelo desenrolar das frases, uma corrente invisível me levava com elas, a quem todo o meu ser imperfeito, mas ávido de perfeição, se entregava”.
MAQUIAVEL (“Décadas de Tito Lívio”): “Passava meu dias nas tabernas de Florença depois da queda (ele se refere à sua saída da Secretaria de Florença, sua prisão e tortura). Quando chegava em casa, vestia meu roupão, lavava meus pés e entrava na minha biblioteca para gozar da companhia dos mortos. E cada livro que retirava de seu sono era um amigo que eu ressuscitava para um diálogo silencioso”.
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Apenas quis mostrar a vocês, LEITORES(AS), que me acompanharam até aqui, que LER significa muito mais do que ser alfabetizado e ter um livro diante dos olhos. Mas creio que a mais importante delas, é a potencialidade que tem a leitura de ME ATRIBUIR OS PREDICADOS COM OS QUAIS EU DEFINO MINHA HUMANIDADE, PARTICIPO DE UMA HISTÓRIA, NUTRO EXPECTATIVAS, DIVIDO UMA VIDA., DIALOGO COM NÃO-CONTEMPORÂNEOS.. Mas, talvez, precisemos aceitar que, no futuro, LER não significará mais nada!
Flávio Brayner é Professor Emérito da UFPE