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Do que você tem medo?

O livro de Jean Dalumeau ("História do medo no Ocidente") mostra que os homens alimentaram diversos e variáveis tipos de medo, concretos e abstratos

Publicado em 23/12/2024 às 11:49
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Com a chegada do fim do ano, temos a impressão de que a noção de tempo linear criada pela visão moderna de “Progresso”, perde um pouco de força, como se aceitássemos a velha ideia de tempo circular das sociedades tradicionais e agrárias: um tempo termina e um Novo Tempo começa.

Depositamos e desejamos, então, que esse Novo Tempo traga esperança, prosperidade, saúde..., MAS, RARAMENTE NOS PERGUNTAMOS DE QUE NOVOS MEDOS ESSE “NOVO TEMPO” É TAMBÉM PORTADOR?

O livro de Jean Dalumeau (“História do medo no Ocidente”) mostra que os homens alimentaram diversos e variáveis tipos de medo, concretos e abstratos (a fome, a peste, as mulheres, a noite, a floresta, os judeus, Satã, os hereges...), cada medo sendo combatido com formas violentas e irracionais (para nossos padrões modernos), em que sempre havia um culpado, que precisava expiar o dano que supostamente causava!

Mais recentemente Bauman, em “O medo líquido”, cunhou esse termo para indicar um tipo de medo sem forma fixa, volátil, fluido e impalpável (desemprego, violência urbana, desamor) e que atinge nossas vidas cotidianas individuais e sociais.

O fato é que estamos sempre produzindo novos medos (atribuindo a certas entidades uma essência temerária que não existe objetivamente nelas, mas que interpretamos subjetivamente assim).

Deixem-me lembrar alguns desses “medos”, dessas situações indesejáveis ou desestabilizadoras de uma certa ideia de ordem social ou cósmica, produzidos sobretudo por intelectuais, e a soteriologia (libertação) que os acompanha:

a) Para Platão devíamos nos libertar - da cacofonia vulgar da Pólis, lugar da opinião sem fundamento- pela vida especulativa;
b) Para Sócrates, o corpo era o aprisionamento da alma, sujeita a desejos e inclinações incontroláveis, que a morte nos libertaria;
c) A religião nos libertaria da tentação e do pecado;
d) A Razão (iluminista) nos salvaria do obscurantismo (da religião) e do poder tirânico;
e) A Revolução nos libertaria da alienação e da exploração de classe;
f) A educação nos libertaria de opressores internos e da consciência ingênua;
g) O empreendedorismo nos libertará dos patrões (sem jamais abolir a exploração do trabalho! Que solução engenhosa!)
h) A extrema direita nos redimirá da política e dos políticos;
i) O pós-colonial nos livrará do “eurocentrismo cartesiano”;
j) O identitarismo nos libertará do Outro opressor;
k) A pós-história das injustiças passadas, praticadas entre culturas e povos;
l) O virtual nos libertará da “realidade”;
m) A biologia molecular da velhice;
n) A Inteligência Artificial do peso do pensamento;
o) A tecnologia do fardo do trabalho;
p) E, finalmente, o tirano nos livrará do peso da própria...LIBERDADE (com todos os seus encargos, responsabilidades e compromissos) e, assim, FICAREMOS LIVRES DA IDEIA DE LIBERTAÇÃO!

Freud achava que na origem de toda sociedade havia um crime ancestral e uma proibição: o parricídio e o tabu do incesto (“Totem e Tabu”). Mas o fato é que, a continuação e permanência de laços sociais parece exigir a produção contínua do MEDO: precisamos de “INIMIGOS” para constituir unidades e pertencimentos simbólicos (nação, pátria, classe social, partido, religião...) e a cada NOVO TEMPO desejamos que o medo da pobreza (“desejo a você, leitor, prosperidade”), dos conflitos (“desejo paz”) e da morte (“desejo saúde”) não assaltem nossas vidas.

Mas, de quantos medos e promessas de redenção uma vida, individual e social, é feita? Não sei.

Do que você tem medo?

Flávio Brayner é Professor Emérito da UFPE e Visitante da UFRPE

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