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Dayse de Vasconcelos Mayer: "O fim pode ser um começo"

premiação do filme "Eu estou aqui" tem sido a notícia grandemente festejada. A divulgação empavonou a alma brasileira - tão carente de elogios

Por DAYSE DE VASCONCELOS MAYER Publicado em 08/02/2025 às 18:25

A premiação do filme “Eu estou aqui” tem sido a notícia grandemente festejada. A divulgação empavonou a alma brasileira - tão carente de elogios, afagos, aplausos e troféus. Contudo, a vida não passa de um “se” temerário. Nesse caso, as premiações de Fernanda Torres não tiveram o poder de encobrir as considerações “sem aplausos”.

Fui treinada para a discordância. Deixei o Brasil por três vezes e passei por julgamentos aturados. Antes, já me havia apartado da vida acadêmica brasileira, carregada de figuras vaidosas e temerárias. Tudo principiou pelos “Júris” que apreciavam teses de mestrado e doutorado.

Intuí que “orientadores” e orientandos exigiam sempre ovações, glórias ou lauréis - resultado de um tipo de sociedade que se alimenta do “divino e maravilhoso”.

Compreendi que não há transformação, aperfeiçoamento e progresso sem críticas inteligentes, lúcidas e bem estruturadas. Por isso não esperneei quando o filme de Walter Sales teve recepção negativa na França.

Sim, no país de Emmanuel Macron, o longa, lançado com o título “Je Suis Toujours Là“, embarrou na crítica forte do “Le Monde”. O autor da “crueldade” foi o jornalista e crítico de cinema Jacques Mandelbaum, que conferiu ao filme apenas uma estrela, em uma escala que vai até quatro.

Uma estrelinha além de trazer sofrimento, concorre para o estilhaço da autoestima. O ensaísta chamou o filme de "hierático" e o desempenho de Fernanda Torres, além de “monocórdico”, com “excessiva carga melodramática”.

Não deixou de lado o fenômeno totalitário, focado de maneira horizontal. Para surpresa dos franceses, em apenas dois dias o periódico teve que apagar cerca de 21.600 comentários ofensivos. Todos encabeçados
por brasileiros.

Para demonstrar que não há consenso na obra de arte – até porque toda unanimidade é jerica, na concepção de Nelson Rodrigues -, outros veículos de comunicação na França tiveram reação diferente:

O jornal Liberátion acentuou que "Walter Salles narra com força e emoção o luto impossível que atingiu os Paiva";

o Le Figaro classificou o filme como "uma cativante e poderosa narrativa histórica" e a revista
de cinema Première definiu a película como "uma obra dilacerante".

Vale a pena lembrar os elogios do “Cahiers du Cinemà”, a revista que venho acompanhando desde os meus tempos na Faculdade de Direito do Recife.

O filme “Eu estou aqui” não é um “Cidadão Kane” dirigido por Orson Welles; tampouco “O Baile”, de Ettore Scola; o “Ladrão de Bicicleta” de Vittorio de Sica ou a “Cidade dos Sonhos” de David Lynch.

Flashback da nossa história de 1964

O drama brasileiro é construído de flashbacks da nossa história de 1964 e possui como razão de fundo o político cassado e exilado Rubens Paiva.

Mas o longa cumpriu, na opinião do professor paulista Eduardo Morettin, a função de “unir o público contra o revisionismo dos saudosistas da ditadura".

A película também revelou que a história sócio-política de um país permite avanços e retrocessos dependendo da impermanência ou debilidade das instituições democráticas.

Entretanto, outras verdades despontam do longa de Walter Sales: a deterioração cognitiva e da memória que o semblante da atriz Fernanda Montenegro repassa. É, não se duvida, a grande metáfora ou símbolo do “não mais estou aqui”.

O rosto álgido ou sem emoções diz muito acerca do filme. É semblante da personagem alforriada da carga de um passado de lutas.

Todavia, a história não empaca. Incumbe às gerações novas o encargo de narrar, vigiar, relatar ou transmitir os fatos para evitar que se repitam os momentos doloridos de 1964.

Estamos aqui é o “nunca mais” à tortura que se alojou nos porões mais secretos da nossa ditadura. O rosto engelhado de Fernanda Montenegro ou Eunice Paiva confirma a frase de Marcelo Paiva: “existem várias formas de contar a história sobre a memória e a falta dela”.

A árdua tarefa de sentinelas do ontem

A expressão de Fernanda Montenegro é uma dessas formas. A fácies de Eunice é um pedido instante para que aceitemos a árdua tarefa de sentinelas do ontem. Tudo isso para que a geração subsequente não mergulhe ou sucumba diante do negrume e estupidez humana.

Afinal, e preciso, acima de tudo, fugir ao fastio que sempre nos acossa ou devora. Quando, no Palácio do Planalto, a tela de Di Cavalcanti recebeu diferentes facadas; o relógio do século XVII, relíquia trazida ao Brasil pela família real portuguesa, em 1808, foi arremessado pelo ar; os galhos da escultura de Franz Krajcberg foram estilhaçados e a ânfora italiana fragmentada em mais de 180 pedaços, percebemos que somos, ainda, criaturas do caos, despojadas de cultura, memória e bom senso.

Eunice ainda estava ainda atilada, embora com diagnóstico de Alzheimer, quando se apresentou, ao lado dos filhos, perante um juiz para concordar com a sua interdição.

“A vida vai depressa e devagar”, dizia Cecília Meireles. Pausadamente, a guerreira ficaria reclusa ou encarcerada numa dimensão que ainda desconhecemos. E a mulher que lutou com aferro para obter ou receber a certidão de óbito do marido assassinado, aceitava, para si, uma certidão de óbito ainda com lampejos de vida.

Estava consciente de que a nossa existência, embora escorada em alicerces ou fundações para procrastinar a morte, não passa de uma arquitetura na iminência de se converter em entulho e pó.

Dayse de Vasconcelos Mayer é mestre e doutora em ciências jurídico-políticas.

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