Boiando no rio

Foi jogado da ponte, levando só o cordão umbilical que sequer amarrado estava
SÉRGIO GONDIM
Publicado em 09/12/2022 às 22:08
As águas do Capibaribe pararam, quase invertendo o curso normal Foto: DIVULGAÇÃO


Ponte da Bicopeba. Nem mesmo o Google sabe o que significa, mas foi lá que, ao nascer o sol, estacionou um motoqueiro com uma mochila. Não trazia peixe, não era caranguejo, não, não era. Não usava óculos e respirador, nem pés de pato ou colete salva vidas. Não sabia nadar, nem conseguiria tomar pé. Mal havia acordado para o mundo e já estava no rio.

Foi jogado da ponte, levando só o cordão umbilical que sequer amarrado estava. Não sangrou. Não tinha nome, documento, pai, mãe ou avós.Ninguém poderia imaginar que fosse capaz de boiar, mas boiou. Boiou egritou, protestando como possível protestar. Foi ouvido. Nunca o pescador havia fisgado um recém-nascido no rio.

Vivo. Hipotérmico e cianosado, mas vivo. Dois quilos quinhentos e setenta gramas, coberto por um pouco de líquido amniótico, a termo.

As águas do Capibaribe pararam, quase invertendo o curso normal, como se o oceano Atlântico que já não aguenta mais receber tanto sofá velho, pneus, sacos, muitos sacos plásticos, também gritasse, basta, não quero mais te receber.

Sérgio Gondim, médico

Como se estivesse dizendo: um dia já me senti pleno com tuas águas puras que espalhei pelo mundo, agora não aguento nem o teu cheiro. Se forças tivesse, Capibaribe, te devolveria uma pororoca de lixo. Se preciso for, fico o tempo inteiro na preamar, para te barrar.

Me recuso a receber um recém-nascido atirado da ponte da Bicopeba. Não acolho o extremo da desumanidade, do hediondo, inimaginável até para os irracionais, por atacar sua cria. Não recebo fruto da covardia, quanta covardia.

Não vou ser cúmplice da maior das perturbações, do gigantesco desequilíbrio social, da podridão da alma de quem joga um recém-nascido no rio.

Os rios e oceanos lavam muita sujeira dos que neles se banham. Percebem que milhões vivem em função do ódio, intolerância, arrogância, agressividade, discriminação e violência. São capazes de muitas maldades, de pior a pior.

Por outro lado, as águas que estão acostumadas com variações diárias entre calma e agitação, sabem que entre uma onda e outra, aparece gente como Gil para cantar: “todo o povo brasileiro, aquele abraço”, gente para surfar em paz com a vida, de forma solidária e gentil, fazendo valer a pena. Sabem que a qualquer momento pode nascer um bebê com muitas virtudes e já sabendo boiar, para melhorar o mundo. Enquanto isso, diante de tudo que estamos vendo e vivendo, é preciso seguir nadando contra a correnteza do mal.

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