falta de moradia

Instalação de novos barracos forma cenário de desalento no Mercado da Encruzilhada, no Recife

Com a vulnerabilidade agravada pela pandemia, pelo menos seis famílias passaram a viver em barracos do lado de fora da grade que contorna o mercado público

Maria Lígia Barros
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Maria Lígia Barros
Publicado em 13/10/2020 às 9:10 | Atualizado em 13/10/2020 às 9:11
YACY RIBEIRO/ JC IMAGEM
MORADIA IMPROVISADA De lona, madeira e papelão, barracos na calçada são ocupados por famílias cuja história de vida ao relento é longa - FOTO: YACY RIBEIRO/ JC IMAGEM

Entre as inúmeras mudanças decorridas da pandemia do novo coronavírus, a paisagem do Mercado da Encruzilhada, na Zona Norte do Recife, também se transformou. Com a vulnerabilidade agravada, pelo menos seis famílias passaram a viver em barracos do lado de fora da grade que contorna o equipamento. Quem acessa o espaço, reformado pela última vez em 2017, se depara, logo na calçada, com moradias de lona, madeira e papelão.

Uma das novas habitantes é Alice Maria de Oliveira, 21 anos, que divide uma das estruturas com o esposo, a cunhada e o filho de 7 anos. Entre as tendas da feira livre montadas no Largo da Encruzilhada, o menino brinca com outras crianças que também moram na rua. Próximo à hora do almoço, Alice prepara a refeição em uma tábua do lado de fora da barraca, exposta ao relento.

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“Chegamos aqui tem mais de seis meses. Sempre moramos na rua, mas (com a pandemia) ficou mais difícil ainda”, relatou. Alice recebe o Bolsa Família, mas explica que não dá para fazer muita coisa com o dinheiro do benefício. “Ajuda um pouquinho, porque as coisas estão tudo caras. R$ 9 o óleo, o feijão tá para mais de R$ 10. Tem feijão quem é rico”, declara.

A pandemia acentuou mazelas como falta de saneamento e a insalubridade. O tempo é de medo. “A gente vive na rua, cada dia é doença em cima de doença que a gente tenta evitar. Mas graças a Deus ninguém adoeceu”, diz.

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Sem ter onde morar, crianças e adultos ocupam calçada do Mercado da Encruzilhada com estrutura para se abrigar - YACY RIBEIRO/ JC IMAGEM
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Chegamos aqui tem mais de seis meses. Sempre moramos na rua, mas com a pandemia ficou mais difícil. O Bolsa Família ajuda, mas as coisas estão tudo caras. Só tem feijão quem é rico", declara Alice Maria Nunes de Oliveira, 21 anos, enquanto preparava uma refeição ao relento - YACY RIBEIRO/ JC IMAGEM
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Sem ter onde morar, crianças e adultos ocupam calçada do Mercado da Encruzilhada com estrutura para se abrigar - YACY RIBEIRO/ JC IMAGEM

O grupo veio da área central do Recife, onde durante meses comércio e lojas de serviços ficaram fechados, seguindo as medidas restritivas definidas pelo governo na fase mais grave da pandemia. Com a queda na movimentação de pessoas, caíram também as doações. Mas a história de vida sem moradia é longa. A cunhada de Alice, Darlene Santos, 32, por exemplo, vive em situação de rua desde os 8 anos de idade. “Aqui é tranquilo. Tem uns que humilham a gente, pensam que por a gente mora na rua é tudo ladrão. Acha que porque têm casa, podem ‘subir’ na gente. A gente não tem para onde ir”, declara.

Eles contam que até agora não receberam nenhum apoio da prefeitura. A ajuda que chega é de grupos que doam alimento e roupas à população em desalento, comenta Edilson do Nascimento, 23, que vive no local com a esposa, a filha e a sogra. “A gente tem que esperar ajuda da comunidade no domingo para poder almoçar. Se não, não tem ajuda”, pontua.

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Comerciantes e frequentadores do mercado se preocupam com as circunstâncias. Professora de artes, Maria Beatriz Lima, 28, vai ao mercado todos os sábados e reparou que a quantidade de pedintes aumentou. “Estou percebendo isso em vários bairros. Em bairros considerados nobres tenho visto tanto barracos quanto pessoas só com lençol, e no Centro nem se fala. Cada esquina tem uma pessoa vivendo na rua”, comenta.

Paralelamente, os vendedores se queixam da insegurança. É o caso de Antônio Farias, 80, proprietário de um boxe no mercado há quase 60 anos. Ele reclama que não há segurança pública no local. “É obrigação da prefeitura colocar a Guarda Municipal aqui, como tinha antigamente”, critica. “Hoje em dia, é a gente mesmo que paga por um segurança particular aqui.”

Do lado de fora, na feira livre, os comerciantes também se sentem expostos. “Eu trabalho amedrontada”, relata Neide da Silva, 65, feirante há 36 anos. “Tem freguês que vem para a feira e fica espantado”, completa José Cândido Filho, 72, que negocia no local há 52 anos.

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José Candido Filho, 72 anos, feirante. Sem ter onde morar, crianças e adultos ocupam calçada do Mercado da Encruzilhada com estrutura para se abrigar - YACY RIBEIRO/ JC IMAGEM
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Eu fico de coração partido porque vejo crescendo o número de crianças e pessoas em situação de rua, e acho que se agravou durante a pandemia", opina a professora de artes Maria Beatriz Lima, 28 anos - YACY RIBEIRO/ JC IMAGEM
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É obrigação da prefeitura colocar Guarda Municipal aqui, como antigamente. Hoje em dia, é a gente mesmo que paga pela segurança", reclama o comerciante Antônio Cosme Fárias, 80 anos, dono de um boxe no mercado há quase seis décadas - YACY RIBEIRO/ JC IMAGEM

"As pessoas são livres para ocupar espaços públicos", diz prefeitura

A secretária-executiva de Desenvolvimento Social do Recife, Geruza Flizardo, diz que a prefeitura monitora o grupo. “Ele vem de um único núcleo familiar que foi desmembrado em seis famílias. Elas são acompanhadas, tanto pela rede de Cras (Centro de Referência de Assistência Social) e Creas (Centro de Referência Especializados de Assistência Social), quanto pelo serviço de abordagem social de rua. Todos a gente conhece por nome, sabemos toda a história de vida”, fala.

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A secretária explica que não há a possibilidade de retirá-las do local. “A gente não pode remover quem está na rua. As pessoas são livres para ocupar espaços públicos. A gente oferece a possibilidade de proteção dentro da possibilidades de acolhida institucional(abrigos com atendimento 24 horas), ou, se tiver certa autonomia, o aluguel social.”

Segundo Geruza Flizardo, esses dois serviços já foram disponibilizados. “Eles não querem acolhimento institucional. Já foi oferecido aluguel social, mas eles não fizeram uso do benefício para este fim. Como já receberam e não fizeram dessa forma correta, a gente avalia que ainda não têm esse perfil. A opção do abrigo continua disponível.”

Já em relação à segurança, a presidente da Companhia de Serviços Urbanos do Recife (Csurb), Berenice Andrade Lima, informa que cada mercado público da capital conta coma atuação de um profissional da Csurb. “É a pessoa que está no dia a dia em contato com permissionários e frequentadores. Também atuam como um dos canais de comunicação entre o público, comerciantes e a Csurb. Quando existe algum problema, a orientação é ligar para 153 (Guarda Municipal) e, em casos mais graves, para a Polícia Militar”, diz. A presidente ainda afirma não ter conhecimento de que comerciantes estão contratando segurança privada.

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