Com crescimento das favelas, Pernambuco reforça presença do Nordeste no mapa da fome
Até 2019, o Recife figurava como a sétima cidade do País com maior número de moradias em favelas
De 2010 a 2019 muito mudou, e não foi para melhor. Parte da população viu o avanço do tempo significar piora. No Brasil, nos últimos nove anos, o total de favelas saltou de 6.329, em 323 municípios, para 13.151, em 734 cidades espalhadas pelo País. O retrato da pobreza, quando não miséria, também foi focalizado em Pernambuco, onde o número de aglomerados subnormais, ou seja, moradias em favelas e palafitas, cresceu 27,7% no mesmo período. A condição degradante de habitação é um indicador da sub-condição de vida, levada ao limite com a escassez de emprego, falta de renda e comida. No Nordeste, a fome já é uma constante na mesa de mais de 7,6 milhões de habitantes.
Não dá para dissociar uma coisa da outra, assim como não assimilar a essa conta a situação econômica do País, que se arrasta desde 2014 em crise, agravada agora com a pandemia da covid-19. A população que já convivia com menos emprego e renda, agora também é atingida pela alta inflação. Fatores que só degradam a condição de vida dos brasileiros, não sendo diferente aos pernambucanos.
"Aqui é uma vida de miséria. Eu to numa situação ruim. Quando tem alguma coisa para dar aos meninos de comer, tem. Quando não tem, eu vou para a cidade (fora da comunidade) pedir. Tenho nove filhos, moram cinco comigo. O bom é que quando tem aula eles comem na escola, mas quando não tem, como no feriado... Dia das Crianças, queriam brinquedo, mas para dar a um tem de dar a tudinho, mas não tem condições. O importante é a comida", conta Vera Lúcia Ferreira da Silva, 42, moradora da comunidade Roque Santeiro, no bairro dos Coelhos, área central do Recife.
A única renda na palafita que abriga os filhos e ela vem do pagamento de Bolsa Família e do auxílio-moradia. Somados, os valores não ultrapassam R$ 400. No Recife, o benefício médio repassado pelo Bolsa Família representou R$ 30,93 por família no último mês de setembro, segundo dados do Ministério da Cidadania, atingindo 105.172 núcleos familiares, cuja a sobrevivência muitas vezes depende dessa quantia.
"Eu vou me virando. Saio para pegar sopa e quentinha que as pessoas dão. Se não fosse esses benefícios, eu nem sei o que faria. Comida nem dá para comprar, porque está tudo caro no Brasil. Hoje em dia o pobre não pode comer nem um pedaço de carne", lamenta Vera Lúcia, que vive numa palafita, na favela, desde antes de 2015.
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Para ela, a precariedade não é bem uma novidade. Mas a percepção é de que a cada dia está mais difícil. Ao longo dos últimos anos, a realidade passou a ser a mesma para outras milhares de pessoas. Nos dados do Instituo Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), Pernambuco saiu de 256.088 (2010) domicílios ocupados em aglomerados subnormais para 327.090 (2019) - crescimento de 27,7%. No País, o avanço foi de 59,3%. Já foram 3,2 milhões. Agora já chegam a 5,1 milhões.
Até 2019, o Recife figurava como a sétima cidade do País com maior número de moradias em favelas (103.701). O segundo maior número dentre as capitais do Nordeste, com 19,5% do total de domicílios nessa condição. Jaboatão dos Guararapes, na Região Metropolitana, completa o ranking dos 10 maiores índices nacionais (84.091). Em Pernambuco, os domicílios em aglomerados subnormais representavam 10,5% do total de domicílios.
"O nosso País passa uma grande crise sanitária e econômica que está atingindo principalmente o povo pobre e trabalhador. Com Pernambuco, essa realidade não é diferente. As pessoas estão sofrendo com a fome, com a miséria, com o desemprego, e com os despejos. São pessoas que não têm como pagar aluguel e não têm uma moradia digna, criando um verdadeiro tormento para todas as pessoas atingidas”, explica o coordenador do Movimento de Luta nos Bairros e Favelas (MLB), Kléber Santos.
Agravamento pandêmico
A situação que já era ruim, ganhou contornos ainda mais dramáticos com a pandemia da covid-19. Desde março de 2020, o mundo perde o controle dos processos de produção e a economia descarrilhou. A pandemia afetou negativamente as condições de renda e trabalho da população em todas as regiões do País.
Entretanto, nas regiões Norte e Nordeste foram observados os maiores percentuais de perda de emprego, redução dos rendimentos familiares, endividamento e corte nas despesas de itens considerados essenciais: todas essas condições referidas como consequência da pandemia, segundo os dados compilados pelo Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da covid-19 no Brasil, da Vigisan.
No Nordeste está o segundo maior percentual de famílias que vivem com 1/4 de salário mínimo per capita (24,2%), atrás apenas da Região Norte (25%). A média do País é de 14%. No Nordeste, 84,4% dos domicílios tinham até 4 moradores.
Aos 50 anos, deficiente físico, Eduardo da Silva, espera um auxílio-moradia enquanto vive na rua Siqueira Campos, no bairro de Santo Antônio, no Centro do Recife. O lar dele é uma pedaço de lona que faz cobertura a um amontoado de papelões dispersos pelo chão. No último ano, o dinheiro para sobreviver veio do auxílio emergencial pago pelo governo federal, R$ 600 mensais. "A gente vive de espera. Eu espero a vontade de Deus e alguém que olhe minha situação. Queria voltar minha vida como era", desabafa ele.
Com a redução nos valores pagos neste ano (ficando entre R$150 e R$375), e o acumulado da inflação, que no ano já chega aos 10%, o poder de compra diminuiu consideravelmente para quem recebe o auxílio emergencial. O benefício atendeu só em 2020 21.932.710 nordestinos, 38,03% da população da região. Só em Pernambuco foram 3.651.375 pessoas, o equivalente a 37,74% dos pernambucanos. Em 2021, as famílias conseguiram comprar apenas o equivalente a 23% de uma cesta básica completa de itens essenciais para a alimentação familiar.
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Região com o maior percentual da população atendida pelo programa, o Nordeste, por consequência ou não, é a região que concentra também o maior número de pessoas em Insegurança Alimentar Grave (passando fome).
Do total de 55.830.694 moradores de domicílios na região, 7.684.981 vivem essa situação. A maior parte (22.944.801) concentra-se na insegurança alimentar leve (quando há preocupação ou incerteza quanto o acesso aos alimentos no futuro ou a qualidade dos alimentos é comprometida para garantir o abastecimento), revelam os dados da Vigisan.
Manter comida no prato talvez tenha sido o desafio mais árduo a quem ainda segue em busca de trabalho, dinheiro, moradia e todas as demais condições básicas para manter a dignidade. Do total de 211,7 milhões de pessoas no País, 116,8 milhões conviviam com algum grau de Insegurança Alimentar. O mais grave é que 19 milhões delas precisam enfrentar ou simplesmente conviver com a fome.