CARNAVAL 2022

"Saudade tão grande": Gildete, a representação da foliã apaixonada pelo Carnaval de Pernambuco

Carnavalesca mesmo antes de nascer, a aposentada Gildete Alves hoje integra o Bloco da Saudade - cujo nome nunca fez tanto sentido

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Katarina Moraes

Publicado em 28/02/2022 às 8:00 | Atualizado em 16/01/2023 às 15:09
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“Ajuda aqui, por favor, a prender o colar. Essa fantasia é muito quente, minha filha”, dizia dona Gildete Alves enquanto se arrumava para as fotos. A produção da carnavalesca é longa, leva horas. Vai desde a maquiagem caprichada até posicionar a cabeça - como chama o chapéu ornamentado.

Mas vale a pena quando, enfim, a integrante do Bloco da Saudade está pronta. A roupa, de cigana, o tema do desfile de 2020, o último em que ela pôde animar as ruas do Recife, traz para a aposentada de 72 anos a lembrança do que chama de “melhor festa do mundo”.

Do sofá do apartamento onde mora, no Totó, Zona Oeste da capital pernambucana, Gildete se debruça por quase uma hora sobre os contos e causos vividos na folia.

Ela não teve chance de escolher amar o Carnaval - ele a escolheu antes disso. Três dias antes de nascer, já ouvia o compasso do frevo da barriga da mãe, Odete, nas ladeiras de Olinda.

"SAUDADE TÃO GRANDE":

Era Odete, inclusive, quem fazia questão de que os filhos saíssem fantasiados todos os dias. “Ela dizia: vocês usam bermuda o ano inteiro, e querem usar também no Carnaval?”; mas ninguém reclamava, não, porque era na semana mais colorida do ano quando eles sentiam que poderiam ser o que quisessem ser.

“Rei, rainha, palhaço. Já fui de tudo”. E sempre na base do improviso, já que as condições financeiras não eram das melhores. “Eu ia a pé para a escola em vez de ir de ônibus para guardar dinheiro das roupas.”

Não demorou para Gildete tomar para si a tradição da família. Nascida e criada na Marim dos Caetés, o chamado tornava-se irresistível.

“Até os anos 80, Carnaval em Olinda era muito família. Ninguém fechava a porta, nem sabia quem estava entrando ou saindo. O povo chegava cheio de cachaça, deitava na sala de qualquer pessoa, dormia, acordava, ia na cozinha, comia. Era maravilhoso”

A animação dela - que até hoje não foi embora, diga-se de passagem - atraiu os olhares da direção da Troça Carnavalesca Mista Pitombeira dos Quatro Cantos, da qual participou por 10 anos. Alguns deles sem desfilar, por ter arrumado um namorado que tinha ciúme que o fizesse.

Mesmo assim, Gildete continuava a bordar as fantasias do bloco, mas caia no choro todas as vezes que via as amigas indo para as ruas e fazendo a festa acontecer, enquanto não podia. “Acho que foi por isso que a gente acabou”, crê.

Com o tempo e a chegada dos filhos, Gildete se afastou da Pitombeira, mas nunca da festa de momo. “Ia para as prévias, mas na sexta de Carnaval eu ia para casa de praia e ficava só assistindo aos desfiles das escolas de samba do Rio de Janeiro.”

As “crianças cresceram” e a amiga, Marta, a convidou para Bloco da Saudade, um dos mais tradicionais blocos líricos da cidade, que conta com 90 mulheres, 30 homens e 20 músicos. Nesta segunda-feira (28), o desfile estaria sendo no Recife Antigo. “O sentimento é sem descrição, é uma emoção muito grande, é toda uma expectativa. Se eu falar, vou chorar.”

DAY SANTOS/JC IMAGEM
Gildete até mesmo já ameaçou fugir do hospital caso não recebesse alta para desfilar - DAY SANTOS/JC IMAGEM

O ditado popular que diz que paixão e loucura andam juntas poderia até ser inspirado no amor de Gildete pela folia. Internada com trombose em 2015, pediu para uma amiga levar sua fantasia ao hospital e armou um esquema para fugir caso não recebesse alta.

“Quando eu estava provando a roupa, os médicos entraram e caíram na risada, e eu disse que iria fugir se não me deixassem sair. Dois dias depois me deram alta e eu fui para o Carnaval. Desfilei todos os dias com os pés queimando do tratamento, parecia que estava pisando em brasa, mas fui.”

Para 2022, a única opção é dançar na sala de casa com a vassoura, porque há dois anos o maior medo do Bloco da Saudade, cantado no frevo “Último Regresso”, virou realidade: deixaram que cada participante do "bloco campeão" guardasse no peito a dor de "não cantar.”

Mas o “adeus” não veio; Gildete tem certeza que o próximo desfile chegará. "Nada é eterno. vai passar, a gente vai brincar com mais consciência de que somos irmãos. O próximo vai ser de alegria. Chega de tanto sofrimento”, pediu.

Agora, vive contando as horas para inundar novamente as ruas da cidade com música e dança enquanto diz que o Recife tem “o melhor Carnaval do meu Brasil.”

*Esta matéria faz parte da série "Saudade tão grande", que publicará nova reportagem sobre o Carnaval de Pernambuco até a Quarta-Feira de Cinzas

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