"Saudade tão grande": Bonecos Gigantes, a tradição de Carnaval que molda talentos na periferia de Olinda
Personagens que dão a Olinda o título de "Pátria dos Bonecos Gigantes" mudam a vida dos jovens da cidade
Na Comunidade do Guadalupe, pouco importam para as crianças os brinquedos em miniatura embrulhados em caixas. Por lá, os gigantes são os que ganham a atenção da meninada, segundo André Vasconcelos, de 41 anos, artesão nascido na região que dedica seus dias a eternizar personagens em tecido, isopor, papel, madeira e fibra de vidro. Mas não só lá: na periferia da "pátria dos bonecos gigantes", um dos tantos títulos que Olinda coleciona, esta tradição carnavalesca é o que, muitas vezes, dá sentido e renda aos jovens, transformando, por meio da cultura, suas vidas.
André começou nesta arte ainda aos 6 anos limpando os pincéis e observando o trabalho do mestre Silvio Botelho, artista plástico responsável por criar a Casa dos Bonecos Gigantes de Olinda, a primeira de Pernambuco. “Eu já tinha contato com os bonecos porque a Comunidade do Guadalupe gira em torno da cultura. Depois da escola, eu ia para a oficina dele, que sempre ocupava meu tempo, confiando na minha educação e me instruindo muito bem. Eu levava muita bronca para aprender. Isso fez com que eu me tornasse o que sou hoje”, disse ele, que integra a equipe do museu dos gigantes na Cidade Alta.
Apesar de ganharem os holofotes na Marim dos Caetés, os bonecos nasceram na Europa da Idade Média. Em Pernambuco, registros mostram que o primeiro surgiu em Belém do São Francisco, em 1919, um "Zé Pereira". Eles só chegaram a Olinda em 1932, a partir do Homem da Meia-Noite, cuja origem é um mistério. Em 1967, o calunga ganhou uma companheira: a Mulher do Dia. Só em 1975 o Menino da Tarde, filho dos dois gigantes, nasceu das mãos de Botelho. O sucesso foi quase imediato. Dez anos depois, a cidade já tinha quase 100 figuras desfilando.
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“Foi fantástico ver isso. Nos anos 80, começaram a aparecer muitas encomendas, e os bonecos começaram a ocupar os espaços de Olinda com nomes diversos”, relatou o mestre. O ofício ficou pesado para um só homem dar conta, o que fez com que Silvio convidasse ajudantes como André. “Isso despertou a curiosidade dos jovens. Eu precisava de mão de obra operacional, e os ensinei a fazer. Muitos jovens estão fora de muitas situações difíceis por influência dos bonecos, que deram oportunidade para eles aparecerem e desenvolverem os talentos que têm. Eles se sentem importantes, além de também terem rentabilidade com isso.”
Em 2022, há cerca de mil bonecos gigantes advindos da Casa espalhados pelo Estado. Na sede, estão pouco mais de 80, entre Luiz Gonzaga, Ariano Suassuna e Alceu Valença. Mesmo sem Carnaval, devido à pandemia da covid-19, novos personagens são criados com frequência, como Gil do Vigor e Carlinhos Maia, celebridades que posam o dia inteiro para fotos com os visitantes. Para serem esculpidos, é necessário um investimento entre R$ 7 e R$ 8 mil, o que, para André, é um “valor simbólico'', porque os personagens são “um celeiro de cultura”.
“Muitos da minha rua quando me veem trabalhando começam a carregar, o que fez com que hoje muitos também estivessem na área artística. Boneco é a arte de brincar, é um conto de fadas. Toda criança quer ser um boneco gigante. Para Olinda, o Carnaval é tudo. As crianças perguntam quando o carnaval vai voltar, e nosso coração fica partido; mas estamos preservando a vida.
Há cerca de 25 anos, Josenildo, conhecido como Camarão, teve a ideia de também incluir as crianças nessa grande brincadeira, por meio dos "bonecos mirins", que podem ser carregados pelos pequenos de até um metro e meio. "Inicialmente, fizemos bonecos para a minha filha e para o filho de Silvio, e o pessoal passava pedindo também. Daí surgiu o encontro dos bonecos mirins. As crianças começam ainda pequenas, já vão aprendendo. É uma satisfação imensa. A gente fica emocionado. É uma briga porque todos querem carregar, nossa camisa saia frouxa dos desfiles de tanto que puxam pedindo para levar.”
Para o pesquisador de frevo Amílcar Bezerra, a influência do Carnaval sobre as comunidades acontece pela festa ter um caráter popular. "É uma válvula de escape que você extravasa a rotina do ano, muitas vezes opressora e monótona, em todas as classes sociais. Obviamente, tem um apoio ainda maior entre as classes trabalhadoras, as que tem menos opção de lazer, de fazer uma viagem, de pagar por um lazer alternativo. Com isso, o Carnaval acaba sendo o espaço do lazer democrático."
Nesta terça-feira, aconteceria o desfile pelas ladeiras de Olinda em tempos sem pandemia. Ao poder público, Botelho cobra que tenha o cuidado em formar novos artesãos, promovendo oficinas, porque “hoje faltam grandes bordadeiras, por exemplo, para os estandartes.” Mas nem por um segundo teme que a tradição dos gigantes esvazie com o período sem Carnaval, porque “dois anos não significam nada” diante da magnitude cultural que a festa tem para a cidade. Na casa onde divide a moradia com mais uma dúzia de gigantes, não há expressões tristes. O criador diz que, ao olhar para o sorriso de suas criações, escuta "falta pouco tempo para começar de novo.”