Os sonhos roubados das crianças moradoras de palafitas no Recife
Já nascidas em vulnerabilidade social, pequenos normalizam os riscos e as situações que vivem diariamente
“Tia, qual é o seu sonho?”, perguntou Mikaelly, de 9 anos, enquanto brincávamos com bichinhos de pelúcia na palafita onde ela mora. Devo ter passado alguns segundos em silêncio, que mais pareceram uma eternidade, pensando numa resposta. Poderiam ser muitas, mas nenhuma palpável ou simples o suficiente para ser explicada rapidamente, ou digna o suficiente para ser dita naquele momento.
Então, comecei a refletir sobre quais poderiam ser os sonhos dela. Olhei ao redor. Mikaelly vive em situação de vulnerabilidade social na Comunidade do Pina, na Zona Sul do Recife. Em um barraco de dois cômodos que comporta ela, a irmã de 1 ano e 8 meses e a mãe, Leydiane da Silva, de 27 anos.
O ambiente estava escuro, apenas uma das lâmpadas funcionava. “Ainda não tive dinheiro para comprar outra”, comentou a mãe. Sem janelas e em um dia abafado, o calor tornou-se intenso, assim como a guerra que as muriçocas travavam contra nós. O piso de madeira já apresentava sinais da necessidade de reparos, assim como a única parede de alvenaria do espaço, construída há mais de 20 anos.
A mãe solo, como tantas outras daquela comunidade, se desculpava pela desarrumação da casa e pelo mau cheiro que, segundo ela, deveria vir de um rato morto ao redor, que ela não conseguia encontrar. Envergonhada, pedia para que a câmera não registrasse o estado do seu antigo fogão, onde o gato da casa subia, tentando alcançar a comida que sobrou do jantar.
Toda a renda daquele lar vem dos R$ 400 do Auxílio Brasil, do trabalho de marisqueira da matriarca e de alguns “bicos” que ela faz quando aparecem. Ali, não se tem direito de escolher o que vai comer ou o que vai vestir - depende do que vier de doação. Que dirá daria aquele lar o direito a Mikaelly de sonhar.
Enquanto fitava a casa, tentando guardá-lo na memória, continuava tentando adivinhar qual seria o maior desejo da pequena. Morar em um apartamento? Virar médica? Viajar para longe? — mas ela logo interrompeu minha reflexão: “meu sonho é ter uma bicicleta.”
Aquela resposta me perseguiu por alguns dias, tentando compreendê-la. Como, diante de tantas faltas, o sonho dela poderia ser uma bicicleta?
Talvez, a bicicleta represente aquilo que ela considera possível conquistar — ainda que, para aquela família, seja difícil. Como esperar que Mikaelly sonhe com moradia digna, alimentação farta, um banheiro com esgotamento sanitário e uma vida que não seja constantemente ligada a riscos se esta é a única realidade que ela conhece?
Na manhã anterior, a poucos quilômetros dali, na Comunidade do Bode, também no Bairro do Pina, uma conversa semelhante se repetiu com Juliana, de 15 anos, cujo teto de casa onde reside há 3 anos está literalmente prestes a desabar após as fortes chuvas que caíram sobre a cidade nos últimos meses o danificarem.
Os seis integrantes da família passaram, então, a ocupar apenas um dos lados do barraco, onde fica a sala de estar e o quarto. Os quatro filhos dormem na mesma cama de casal, enquanto a mãe, grávida de quase 9 meses, e o pai deitam em um colchão no chão da sala durante a noite. Não há sequer uma porta que divide os cômodos.
O banho é feito com uso de baldes, e o banheiro é um buraco no chão que leva os dejetos até a maré. Os gabirus passam direto por debaixo da casa, diz Juliana, que parece já ter naturalizado a convivência com os animais. Para receber correspondências e encomendas, a família cadastra a casa do vizinho, já que a dela não é registrada.
Juliana assistiu pela televisão à Comunidade do Pina pegar fogo, em 6 de maio, e teve medo. “Todo mundo ficou em alerta aqui, para que não aconteça também”, revela. Isso porque a fiação elétrica do Bode é tão precária quanto a de lá — uma das razões que, de acordo com os moradores, podem ter causado a tragédia.
A família da adolescente aguarda o apartamento no habitacional Encanta Moça, no antigo terreno do Aeroclube, cuja entrega está em atraso. “A gente foi cadastrado. Quando ficar pronto, a gente vai ter que ir para lá, mas ninguém sabe quando vai sair”, diz a mãe, a marisqueira Angelina Pessoa, 33. Ela reclama que a nova moradia, com menos de 50m², não vai ter espaço para tanta gente.
“O que mais você queria ter na sua casa?”, pergunto, deixando-a livre para responder o que quiser. “Um tablet, porque aqui é um para quatro". De novo, revestida do privilégio do querer, retruco: "mas se você pudesse pedir por qualquer coisa?", dando ênfase ao qualquer. "Também um telefone, porque o que a gente tem está quebrado, ou uma televisão, porque só tem uma para todo mundo”.
Claro. Criança quer brincar. Mas o lazer, em uma palafita, é sempre um restrito. É perigoso fora, e é perigoso dentro.
Sem um plano amplo de moradia popular, com habitações que contemplem a camada mais vulnerável da sociedade, e sem apresentar a essas populações seus direitos como cidadãos, mais e mais Mikaellys e Julianas vão crescer na Região Metropolitana onde o básico para a subsistência da maioria parece um sonho que não vale a pena ser sonhado.