Um dia nas palafitas do Recife, onde os "homens vivem como bichos"
Nos dias seguintes ao incêndio que destruiu barracos improvisados na Comunidade do Pina, a reportagem do JC visitou comunidades e retratou as violações diárias que acontecem aos moradores de palafitas
Quase não se vê o beco na Comunidade do Pina, na Zona Sul do Recife, onde mais de dez famílias residem. Entre tantos invisíveis, alguns ainda mais. No caminho estreito de cerca de cinco metros, só passa uma pessoa por vez. Ainda assim, as madeiras envelhecidas rangem, demonstrando já não suportar o peso dos moradores, que as tateiam com cuidado. Afinal, basta um passo em falso para levá-los direto ao mangue.
"O filho de uma vizinha caiu e morreu", diz a diarista Mônica da Silva, de 46 anos, à repórter. Para reforçar o piso, ela jogou um fogão velho na maré, que fica a pouco mais de um metro de distância da plataforma onde está a casa dela. O eletrodoméstico serviu de degrau para que ela descesse e coletasse algumas tábuas de madeira jogadas ali. "Agora sim", pontua, enquanto posiciona o remendo, cobrindo os buracos da travessia improvisada.
Ela entendeu ter sido preciso que labaredas tomassem conta do céu e o trânsito fosse paralisado na última sexta-feira, 6 de maio, para que a cidade enxergasse as violações diárias que sofre na palafita onde vive com o filho há mais de três anos. Uma realidade semelhante a de tantas outras famílias residentes nas 4.725 moradias consideradas precárias na capital pernambucana, segundo cadastro da Prefeitura.
Na cidade onde o déficit habitacional ultrapassa as 71 mil moradias, o incêndio representou apenas o último dos descasos. Antes dele, há uma série de absurdos que sequer foram iluminados pelo fogo. Tantos deles relatados nesta reportagem pelo JC. Outros, reservados à vivência diária dos afetados — como desabafa Mônica.
"O dia a dia aqui é sofrido. Só quem sabe é quem está vivendo nessa situação. E quem está é porque está precisando, ninguém está aqui porque quer. Aluguel está caro, e quem não tem renda e vive de um auxílio, como vai construir uma casa? Então faz um barraco para ter onde dormir.”
Na rotina das palafitas, o tempo parece não passar da mesma forma. Nenhuma tarefa doméstica é simples. Mesmo a menor delas demanda esforço e destreza, desde o começo até o final do dia. Uma batalha constante para se ter e fazer o ordinário.
Na casa da diarista, com uma só cama de solteiro e três moradores, já se acorda tirando o colchão do chão para liberar a circulação no ambiente apertado, de em torno de 10m². Antes da higiene pessoal, é preciso coletar água no píer, onde está instalada a única torneira da comunidade, e aguardar em uma fila que, de tão longa, às vezes é ocupada ainda de madrugada.
As roupas podem ser mantidas sujas durante dias até que sejam lavadas e estendidas em varais pendurados dentro dos barracos ou nos que ficam do lado de fora, que são compartilhados entre os moradores. "Um dia eu lavo, outro dia outra vizinha lava. A gente se ajuda", explica Grasiane de Oliveira, 30 anos.
Os baldes são carregados um a um. Sem chuveiro, uma 'cuia' auxilia no banho, que é tomado sobre um buraco que permite que a água escorra até a maré. Em muitas das palafitas, não há sequer uma divisão entre o que se chama de banheiro e onde as refeições são preparadas, normalmente em fogareiros portáteis ligados a botijões de gás, cujo preço atual é um dos principais aperreios das famílias.
Em absolutamente nenhuma casa há uma ligação regular de esgoto. "Nunca tive um banheiro", pontua a manicure Erika Stephanye, 23. Os vasos sanitários são posicionados de enfeite; afinal, são inúteis. Para fazer xixi e cocô, eles são afastados, e os moradores sentam no buraco do piso. Nos piores casos, as necessidades mais básicas de um ser humano são expelidas sem qualquer dignidade, em um saco plástico que depois é lançado sobre o mangue.
Manter a higiene é uma missão impossível. Não importa quantas vezes a casa seja limpa, os ratos, as baratas e os escorpiões vão continuar a invadir pelas brechas entre as madeiras, atraídos pela grande quantidade de lixo espalhada pelo mangue. A comida precisa ser estocada em recipientes fechados para impedir que eles cheguem até elas.
"A gente mata, mas não tem jeito. Eles derrubam nossas coisas, não podemos comprar nada que eles começam a roer", diz Mônica. O amigo, Elias Francisco Oliveira, 41, que está abrigado em sua casa desde que a dele foi queimada, emendou: "Ontem acordei de madrugada com um mau cheiro. Quando vi, o gabiru estava perto da minha cara. Dei um tapa que ele voou."
A situação envergonha a pescadora Leydiane da Silva, 27, que pede desculpas pelo mau cheiro da casa ao receber a reportagem. "Acho que tem algum morto por aí, mas não consigo encontrar." Na palafita, dormem ela e as duas filhas, de 9 e 1 ano e 8 meses — mais uma das tantas mães solo que residem na comunidade.
No meio da conversa, ela revela ser a vizinha que perdeu o filho, Mikael, na maré. "Há quanto tempo isso aconteceu?", questiona a repórter, que é respondida com rapidez — "há 4 anos e 8 meses" — como quem, em luto, conta os segundos desde a morte prematura do pequeno. Um pequeno deslize que custou uma vida, e, eternamente, a paz de uma mãe.
"Não consigo falar muito sobre isso. Foi a pior coisa que me aconteceu na vida. Ele estava prestes a completar um ano, eu estava organizando a festinha dele. Fui catar sururu enquanto o mingau dele esfriava. Quando fui procurá-lo, não o encontrei. Ele passou por mim e eu não o vi. Achava que estava na casa de uma vizinha, mas depois de muito tempo um rapaz levantou uma das madeiras e viu que ele caiu na brecha do chão e morreu afogado".
Leydiane é mais uma que traz o pão para dentro de casa por meio da venda de mariscos, atividade que sustenta grande parte da Bacia do Pina. Alguns moradores já começam o ofício dentro da barriga das mães, que, sem renda fixa, trabalham mesmo grávidas, em uma rotina cansativa, com movimentos repetitivos e que rende inúmeras feridas causadas pelas cascas finas dos mariscos.
"Eu mergulho na lama para pegar, a gente nem consegue enxergar, às vezes se corta, porque tem de tudo dentro do mangue. Boto o meu [sururu] em um carrinho de mão e saio oferecendo pelas ruas. Em época de chuva, quase não tem”, conta marisqueira, que no inverno, quando a coleta fica escassa, precisa se virar com a renda de R$ 400 que recebe do Auxílio Brasil.
Enquanto a entrevista acontece, do lado de fora, os corredores da comunidade já estão escurecidos. Poucas lâmpadas funcionam. Os moradores utilizam lanternas no celular para caminhar. Risadas são ouvidas. Ali as pessoas ainda costumam colocar um banquinho do lado de fora e conversar por horas a fio, enquanto as crianças brincam como podem.
O calor predomina na noite nublada. Sem janelas, a missão de trazer uma brisa para casa fica a cargo de ventiladores, sempre insuficientes para a quantidade de gente que está dormindo. Nas madrugadas, a luta é contra as muriçocas, que não dão trégua. As pessoas estapeiam-se enquanto tentam descansar.
Toda a rede elétrica nas palafitas é emendada irregularmente por gente que nem mesmo consegue se manter bem alimentada, quanto mais arcar com os custos mensais da conta de energia. As lâmpadas ficam penduradas próximas às cabeças das pessoas, que costumam sofrer choques, e queimam constantemente. Já é natural passar dias no breu. Basta um vento forte para derrubar a ligação.
As centenas de fios entranhados uns aos outros imitam as vidas tão misturadas na comunidade pela falta de espaço entre os barracos, que expõem desde as brigas até os momentos de intimidades de casais, que as paredes finas não conseguem abafar.
A falta de portas e divisões entre os cômodos massacra a privacidade entre os parentes. A marisqueira Angelina Pessoa, 33, está prestes a completar nove meses de gestação, sabe que, com a chegada do neném, o sono dos outros quatro filhos será comprometido. As crianças precisarão dividir a cama de casal com o recém-nascido e, assim, perder noites de sono junto aos pais, que dormem em um colchão na sala.
Os barracos, em geral, são ocupados por móveis antigos, muitos vindos de doações. "Posso pedir um favor a vocês? Vocês não filmam esse fogão velho? Porque ele está vergonhoso", interrompeu Leydiane, enquanto fotos de sua casa eram tiradas. Na noite anterior, ela havia ganhado um outro fogão, cujo pé quebrou enquanto ela o carregava sozinha para dentro.
Lá, com o sonho de uma casa digna tão distante, torna-se mais palpável juntar dinheiro e comprar uma televisão ou um celular, por exemplo, que custam menos até que a reforma na palafita. Ainda assim, o tempo para conseguir adquirir os itens é inversamente proporcional ao que estes são perdidos. Os armários se desprendem com facilidade das paredes de madeira e despencam.
Nos dias de chuva intensa, não tem jeito, tudo molha. Logo começa uma operação para salvar o que se pode. Os eletrodomésticos das palafitas são cobertos com plásticos e lençóis, para evitar que as goteiras os danifiquem. As madeiras ficam "fofas", mais fáceis de desabar. Os móveis são rapidamente suspensos, antes que a água invada e chegue na altura das canelas.
Foi numa dessas chuvas que o teto do 'cacareco', como Angelina chama sua palafita na Comunidade do Bode, também na Zona Sul da cidade, cedeu. "Não tivemos condições de reformar ainda". Um barraco simples, com um só cômodo, chega a custar cerca de R$ 3 mil para ser construído. As madeiras precisam ser trocadas em um intervalo de 2 e 2 anos, senão correm o risco de despencar.
Por esse motivo, o vizinho e catador Amilton da Silva, 44, abandonou a palafita há cerca de 8 meses. “Se a gente entrar, ela cai. Mas não tenho como comprar as madeiras agora, porque estou desempregado e não tenho uma renda”, disse ele. Levou tudo o que tinha para a casa de amigos na região, onde hoje mora de favor.
Entre as centenas de violações de direitos, Grasiane expõe mais uma que atinge em cheio as crianças: a falta de lazer. Com medo, ela mantém os filhos dentro de casa, sob a vigilância constante. "Eu deixo uma madeirinha na porta para elas ficarem falando com as pessoas quando passam para não saírem. Às vezes coloco os brinquedos no píer, aqui na frente de casa, e fico sentada observando. Quando termina, já entram."
Moradora do Bode, a auxiliar de cozinha Eloisa Carla Veríssimo, 35, passou a viver sozinha para que os quatro filhos, que antes moravam com ela, vivessem em um lugar mais confortável. Os brinquedos das crianças enfeitam toda a casa, esperando a visita dos pequenos aos finais de semana. "Preferi que ficassem com o pai, porque para mim, sozinha, tudo bem. Mas com eles era bem difícil. Eu queria ter uma casa de alvenaria para voltar a morar com eles".
A cadela Lupita, de 3 meses, tornou-se, agora, a única companheira junto às plantas, posicionadas no que seria o quintal da casa, das quais cuida com afinco. É assim que tenta, na medida do possível, transformar aquele espaço em seu lar. Ao ver o incêndio que atingiu o Pina, entristeceu — sabe que as condições de onde mora não são melhores que as dali. E pediu aos seus orixás que o caso não se repetisse no Bode.
Vez ou outra, os moradores das palafitas até demonstram conformidade com a própria realidade: afinal, poucos viveram uma diferente daquela. "É uma casa normal. O barraco tem que ter as estroncas trocadas, senão fica fraco, pode cair e demolir. Mas é normal. Só é diferente porque na chuva é mais complicado, por causa de xixi de rato, tem que ficar de sandália. Tudo normal. Quando a maré enche tem que deixar as crianças mais dentro de casa, porque podem cair, como muitos já caíram", disse Grasiane.
Mas todos os entrevistados, sem exceção, sabem que merecem uma moradia digna. “Fico envergonhada quando eu saio, vejo outros lugares, e tenho que voltar para essa casa. Aqui não é lugar de se morar”, afirmou Leydiane. “Faço um apelo como mãe e como ser humano para que nos tirem daqui, porque vivemos pior que um animal”, clama, enquanto espanta um gato que disputa o jantar com a família.
"Vi ontem um bicho
Na imundície do pátio
Catando comida entre os detritos.
Quando achava alguma coisa,
Não examinava nem cheirava:
Engolia com voracidade.
O bicho não era um cão,
Não era um gato,
Não era um rato.
O bicho, meu Deus, era um homem."
-O Bicho, de Manuel Bandeira