Sem banheiro nem água: mulheres recifenses adoecem sem investimento em infraestrutura urbana, afirma estudo

Levantamento elaborado pela ONG Habitat para a Humanidade Brasil estima que mais de 269 mil mulheres da cidade não têm ligação com a rede de esgoto

Publicado em 20/09/2024 às 13:34

A falta de água nas torneiras, o esgoto a céu aberto e a ausência de banheiro em casa atravessam a vida de milhões de famílias em todo o Brasil. Apesar de ser considerado um direito fundamental para a garantia de uma vida com dignidade pela Organização das Nações Unidas, o acesso ao saneamento é negado a muitas famílias do país - muitas delas chefiadas por mulheres.

As carências na infraestrutura de moradias brasileiras, como abastecimento de água e esgotamento sanitário, ausência de banheiro exclusivo ou falta de reservatório para armazenamento de água ou inadequação fundiária foram registradas pela Fundação João Pinheiro.

Os dados do levantamento de 2024 revelam que mais de 26 milhões de domicílios apresentam algum tipo de inadequação habitacional, problema que atinge principalmente as mulheres (62,6%), pessoas negras (66,3%), de mais baixa renda (74,5%) e que estão nas regiões Norte (76,5%) e Nordeste (58,8%).

“O acesso a água e saneamento contribui para a dignidade das mulheres. A ausência do básico aumenta a jornada de trabalho e traz problemas graves, como a dificuldade para uma higiene íntima eficiente, por exemplo”, destaca Raquel Ludermir, gerente de Incidência Política da Habitat Brasil.

Além dos problemas com a higiene íntima, as mulheres que têm o direito ao saneamento negado enfrentam falta de privacidade, dificuldade no cuidado com as crianças e com as atividades domésticas que realizam e prejuízos à saúde física e mental.

Um levantamento elaborado pela ONG Habitat para a Humanidade Brasil, realizado com base em dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), estima que mais de 2,3 milhões de mulheres vivem sem água canalizada em todo o Brasil, e mais de 4,5 milhões não têm acesso à rede geral de esgoto em seus domicílios apenas nas capitais do país.

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Mais de 2,3 milhões de mulheres vivem sem água canalizada em todo o Brasil - BRENDA ALCÂNTARA/JC IMAGEM

No Recife, os números do negligenciamento também são altos: mais de 269 mil mulheres da cidade não têm ligação com a rede de esgoto, quase 14 mil não têm recursos para destinação do lixo, 6.780 vivem sem água canalizada e 3.133 não têm banheiros próprios.

Entenda cada classificação, de acordo com a pesquisa:

  • Viver sem ligação com a rede de esgoto: recorrer a fossas, buracos, valas, rios, lagos, córrego, mar ou outras formas de esgotamento
  • Não ter recursos para destinação do lixo: destinam lixo enterrando ou queimando na propriedade, jogando em terreno baldio, encosta ou área pública e outras formas
  • Viver sem água canalizada: recorrer a cuias, cumbucas e reservatórios diariamente
  • Viver sem banheiro próprio: compartilhar banheiros entre mais de um domicílio, ter apenas sanitário ou buraco para dejeções, sem um cômodo destinado às necessidades, e não ter sanitário, nem banheiro

“O estudo ajuda a gente a entender as histórias e as experiências de mulheres que não têm água encanada, que não têm suas casas ligadas à rede de esgoto e, por isso, vivem com uma série de dificuldades e desafios em questões muito básicas, como tomar banho, lavar roupa, e demais tarefas domésticas, além de ter prejudicado o seu acesso a saúde e demais vivências”, explica Raquel.

ÁGUA SÓ DE MADRUGADA

Em depoimento à Habitat para a Humanidade Brasil, a costureira Assata*, de 25 anos, relatou seu cotidiano de exaustão por conta da luta para abastecer a casa.

O racionamento de água se soma a um dia inteiro de trabalho. Assata aproveita a luz do dia para costurar e, durante a noite e pela madrugada, precisa abrir mão do descanso para encher os baldes que abastecem a água da cozinha e do banheiro.

É nesses períodos - das 22h às 3h - que a água chega com mais força na bica comunitária. Assata contou, ainda, que a caixa d’água de 500 litros que abastece a casa fica como reservatório, pois enche a cada dois dias.

*O nome da entrevistada foi preservado pela equipe do levantamento por questões éticas e de segurança

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Ao levantamento, a recifense Assata* relatou seu cotidiano de exaustão por conta da luta para abastecer a casa - BRENDA ALCÂNTARA/JC IMAGEM

ADOECIMENTO: MAIS DE R$ 4 BILHÕES EM INTERNAÇÕES NO PAÍS

As mulheres que vivem sob violação do direito ao saneamento básico e com a escassez de recursos também esbarram em um problema de saúde. Convivendo com o adoecimento dos filhos e filhas em decorrência de doenças que poderiam ter sido evitadas com o acesso à água potável, as mulheres ainda sofrem com os impactos na renda: muitas vezes, são as únicas cuidadoras e, trabalhando por conta própria, não conseguem arrecadar o valor que precisam para o sustento.

Sem acesso à higienização dos próprios corpos, que podem estar expostos a ambientes contaminados, com esgoto a céu aberto, meninas e mulheres se tornam mais suscetíveis a doenças.

Só em 2023, o país registrou que meninas com idade entre 10 e 19 anos ficaram 1.598 dias internadas com doenças inflamatórias na região pélvica e no colo do útero que, entre outros fatores, podem ter sido causadas ou agravadas pela falta de saneamento básico. Contando esse valor em números corridos, são mais de quatro anos.

Além do cuidado com as meninas, só em 2023, mulheres recifenses passaram 1.170 dias internadas por doenças de veiculação hídrica, como diarreia de origem infecciosa presumível, leptospirose febre amarela, febre hemorrágica devida ao vírus da dengue e malária. O valor total de internação ultrapassou os R$ 133 milhões só na capital pernambucana. No Brasil, as mais de 7.500 internações custaram ao Estado mais de R$ 4 bilhões.

As doenças de veiculação hídrica podem se dar por múltiplos fatores. De acordo com o levantamento da Habitat para a Humanidade Brasil, algumas possibilidades são a exposição de baldes e canos de distribuição de água a ambientes contaminados, que podem se misturar ao esgoto, por exemplo.

Para a antropóloga, mestre em Direito e analista de pesquisa da Habitat para a Humanidade Brasil, Yasmin Rodrigues, com saneamento básico, se previne doenças físicas e psicológicas. “O custo do adoecimento é qualitativamente maior do que o investimento em infraestrutura urbana e melhorias habitacionais. Quem quer ver seu povo com saúde, precisa aumentar os recursos para esgotamento sanitário, abastecimento de água e não só isso: é preciso melhorar as condições de vida da porta para dentro das moradias”, explica.

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