Tensões marcam projeto de realocação de quilombolas por Suape; iniciativa tem parceria com a UPE

Antropólogos e moradores relatam sofrimento emocional, problemas de saúde e dificuldades econômicas. Veja o que Suape e a UPE falam sobre o assunto

Publicado em 26/10/2024 às 14:18

O Governo de Pernambuco anunciou, no dia 4 de outubro, por meio de publicação no Diário Oficial, uma parceria entre Suape e a Universidade de Pernambuco (UPE) para a realocação e preservação cultural do Quilombo Ilha de Mercês.

A oficialização da parceria contou com a presença do presidente da Associação dos Remanescentes Quilombolas da Ilha de Mercês, Magno Emanuel Araújo.

De acordo com o texto, o Complexo Industrial Portuário de Suape e a universidade, por meio do Instituto de Apoio à Universidade de Pernambuco (IAUPE), têm o objetivo principal de “permitir que a realocação seja realizada de maneira respeitosa, inclusiva, sustentável, promovendo o bem-estar e a continuidade cultural do quilombo”.

Desde 1992, o território foi definido como zona industrial, onde se instalaram indústrias, como a Refinaria de Petróleo Abreu e Lima e a Petroquímica Suape.

Localizado no município de Ipojuca, o Quilombo Ilha de Mercês obteve o Certificado da Fundação Cultural Palmares atestando seu autorreconhecimento enquanto quilombola no ano de 2016.

A região tem histórico de tensões desde a chegada de Suape ao território, com conflitos entre os quilombolas e o empreendimento. Para o mestre em Antropologia Luís Paulo Santana, “o quadro [da parceria] se apresenta mais complicado do que aparenta ser e levanta mais incertezas do que segurança”.

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Desde 1992, indústrias como a Refinaria de Petróleo Abreu e Lima e a Petroquímica Suape se instalaram no território, no município de Ipojuca - Divulgação

Entre os anos de 2019 e 2022, o pesquisador estudou a localidade dos pontos de vista histórico, social, econômico e ambiental. Para ele, a expansão da região para o desenvolvimento portuário acontece sem oferecer alternativa de negociação e não há consenso dentro da comunidade sobre o reassentamento - o que resulta em conflitos internos.

“É uma resposta tardia a uma catástrofe prolongada que atinge a comunidade há quatro décadas. A empresa Suape precisa reconhecer sua responsabilidade pela situação da comunidade depois de décadas de violações”, afirma Santana.

O pesquisador questiona: “Como ficam as pessoas que não querem sair? Para onde vai o grupo reassentado? O complexo vai garantir terras férteis? O que vai acontecer com o território?”.

Em entrevista ao JC, o diretor de Sustentabilidade de Suape, Carlos Cavalcanti, afirmou que o objetivo é que o projeto seja uma referência em processos de realocação.

“A comunidade está localizada dentro da poligonal do Porto de Suape e o risco associado é alto. Para ter um processo harmônico, nós contratamos o IAUPE para que os professores especialistas nos assuntos de advocacia, levantamento fundiário e atividades tradicionais e agricultura deem o suporte necessário para que a gente construa o melhor projeto, assim como os melhores cenários para que as comunidades possam levar consigo o seus modos de vida tradicional”, pontuou.

RAÍZES EM MOVIMENTO

Intitulado “Raízes em Movimento”, o projeto prevê a publicação de um livro memorial sobre o Quilombo Ilha de Mercês e a organização de eventos e exposições sobre a história, a cultura e as contribuições da comunidade quilombola.

O antropólogo Pedro Silveira, membro do Comitê Povos Tradicionais, Meio Ambiente e Grandes Projetos da Associação Brasileira de Antropologia, afirma que o projeto Raízes em Movimento apresenta algumas contradições da proposta.

“É como se fosse possível uma manutenção da memória da comunidade a partir do desenraizamento dessa comunidade do seu território. É como se, para que a memória da comunidade tivesse continuidade, bastasse registrar essa memória como uma coisa do passado”, aponta o pesquisador.

Para Pedro, existem questões que devem ser abordadas durante o processo. Uma delas é que a comunidade, que se reconhece e é reconhecida como quilombola, tem direito sobre o território e deve ter acesso à regulação fundiária. De acordo com ele, nesse contexto, o reassentamento só deve acontecer em casos excepcionais.

O pesquisador também destaca que a resistência da comunidade no território significa a manutenção da integridade ambiental do mesmo. “A comunidade é a guardiã dessa integridade”, afirma.

Além disso, Silveira afirma que há impossibilidade lógica de condições de reassentamento que deem uma condição igual a que a comunidade, que pratica a agricultura familiar e a pesca artesanal, tinha antes dos impactos do complexo. Para ele, o único motivo pelo qual uma parte da comunidade aceita o diálogo sobre o reassentamento é pelas consequências de todo o processo de violência.

Luís Paulo Santana
A pesca artesanal e a agricultura familiar são algumas das atividades praticadas na comunidade - Luís Paulo Santana
Luís Paulo Santana
A pesca artesanal e a agricultura familiar são algumas das atividades praticadas na comunidade - Luís Paulo Santana

O diretor de Sustentabilidade de Suape esclareceu que o projeto tem como princípios estabelecidos a participação comunitária, a ancestralidade, a sustentabilidade, a infraestrutura essencial à comunidade e o empoderamento financeiro.

A respeito da proteção ambiental do território, Carlos Cavalcanti pontuou que “a tendência é que na área do Quilombo Mercês sejam estabelecidos empreendimentos voltados para a transição energética”. Cavalcanti também declarou que Suape está tendo cuidado no projeto de realocação devido ao risco à saúde das famílias, que apresentaram problemas respiratórios, irritação nos olhos e na pele.

A tendência é que na área do Quilombo Mercês sejam estabelecidos empreendimentos voltados para a transição energética
Carlos Cavalcanti, diretor de Sustentabilidade de Suape

LUTA PELO TERRITÓRIO

Conhecido como Seu Martins, José Reis da Silva, de 52 anos, vive na Ilha de Mercês desde que nasceu. Ele conta que suas primeiras impressões sobre a chegada das indústrias ao território foram boas, mas tudo mudou com o tempo.

“No começo eu achava bonito”, inicia. Ele relata, ainda, que nos primeiros contatos com trabalhadores, ouviu deles que iriam aterrar o mangue. “Falava para o meu avô e ele dizia ‘E homem tem o poder de aterrar o mangue?’”.

Com as mudanças provocadas pela instalação dos empreendimentos, ele relata escassez nos manguezais e dificuldades na agricultura. “A gente tinha de tudo, camarão, aratu, caranguejo, sururu, e hoje a gente não tem. Eu sinto miséria, desgraça, fome, falta de fruta e falta dos meus parentes que tiveram que sair, expulsos. Todas as comunidades que eles realocaram só têm fome, miséria e desgraça e, antes deles chegarem, nada disso existia”, lamenta.

Luís Paulo Santana
Agricultura familiar na Ilha de Mercês - Luís Paulo Santana

Seu Martins conta, ainda, que foi consultado por um grupo do complexo, acerca do reassentamento, e não aceitou o acordo.

“O que eu quero é minha paz e minha identidade. Vou lutar até meu último suspiro pelo meu território e pela minha família”.

Me sinto injustiçado, com angústia, raiva
Seu Martins, remanescente do Quilombo Ilha de Mercês

O quilombola de Ilha de Mercês mora com a família e destaca que famílias que saíram da comunidade adoeceram e voltaram para o território. “Quando Suape chegou, tiraram muitos terrenos dos moradores nativos e deixaram abandonados. Suape acabou com nossa cultura e nossa vivência”, conta.

A pesca artesanal nos manguezais e a agricultura de subsistência são algumas das atividades praticadas na comunidade.

VEJA AS MUDANÇAS NA REGIÃO AO LONGO DOS ANOS:

INSTITUIÇÕES GARANTEM PRESERVAÇÃO CULTURAL

O Complexo Industrial Portuário de Suape e a UPE garantem que a realocação do Quilombo Ilha de Mercês vai acontecer de forma a garantir a preservação cultural dos remanescentes.

“A partir das contribuições de docentes, discentes e servidores de diferentes unidades de educação e saúde, vamos colaborar com a promoção de uma relação colaborativa e sustentável na comunidade quilombola da Ilha de Mercês e no Complexo Industrial Portuário de Suape. Será mais um projeto no qual a UPE colocará em ação suas práticas de ensino, pesquisa, extensão, inovação e serviços, presentes em todas as regiões de Pernambuco", ressaltou o Reitor em Exercício da UPE, professor José Roberto Cavalcanti.

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Suape e UPE firmaram parceria para realocação dos remanescentes do Quilombo Ilha de Mercês - Divulgação

De acordo com o diretor de Sustentabilidade de Suape, Carlos Cavalcanti, o projeto foi dividido em quatro fases, durante 24 meses.

CONFIRA O CRONOGRAMA DAS AÇÕES:

  • Preparo e diagnóstico, levantamento de dados, atualização de cadastros, realização de entrevistas, definição de lideranças locais e mapeamento histórico e cultural - de setembro a dezembro de 2024
  • Análise socioeconômica, de condições de vida, infraestrutura e levantamento da situação da comunidade, posse a posse - de janeiro a agosto de 2025
  • Implementação das ações, com trabalho de capacitação da comunidade, promoção de práticas sustentáveis de agroecologia e bioeconomia - de setembro de 2025 a agosto de 2026
  • Socialização de todos os resultados desenvolvidos para ajustes em uma possível nova etapa de continuidade do projeto - agosto de 2026

A pesquisadora Vânia Fialho, que também é membro do Comitê Povos Tradicionais, Meio Ambiente e Grandes Projetos da Associação Brasileira de Antropologia, declara ter preocupação com o projeto. “Eu considero essa notícia como mais uma violência porque está sendo colocada de maneira festiva, como na verdade é algo que deveria está sendo trabalhado com mais densidade”, afirma.

“Não teve participação da comunidade no início, quando o empreendimento foi instalado. Não há o que celebrar, é um descaso planejado. As pessoas não estão conseguindo sobreviver por conta de questões emocionais e econômicas”, conta a antropóloga.

Não há o que celebrar, é um descaso planejado. As pessoas não estão conseguindo sobreviver por conta de questões emocionais e econômicas
Vânia Fialho, da Associação Brasileira de Antropologia

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A tendência é que na área do Quilombo Mercês sejam estabelecidos empreendimentos voltados para a transição energética

Carlos Cavalcanti, diretor de Sustentabilidade de Suape
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Me sinto injustiçado, com angústia, raiva

Seu Martins, remanescente do Quilombo Ilha de Mercês
Citação

Não há o que celebrar, é um descaso planejado. As pessoas não estão conseguindo sobreviver por conta de questões emocionais e econômicas

Vânia Fialho, da Associação Brasileira de Antropologia

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