Empreender é alternativa de renda para a população LGBTQIAPN+
População LGBTQIAPN+ sofre com preconceito, violência e portas fechadas no mercado de trabalho. Ocorreram avanços, mas ainda há muito o que fazer
Aquele trabalho de corretora de imóveis tornou-se um incômodo para Maria Eduarda Moura. Precisava adotar um padrão "de normalidade" usado pelas pessoas, que fazia com elas se parecessem "iguais", saídas de um mesmo "molde". Não conseguiu ficar seis meses no lugar. Bissexual, dia após dia, precisava escamotear seu jeito para se manter ali. Falava de acordo com o código do outro, vestia a roupa instituída como adequada pelo outro e seguia o comportamento esperado pelo outro. Esse é um dos problemas enfrentados pela comunidade LGBTQIAPN+ para acessar o mercado de trabalho. Apesar do discurso de diversidade e igualdade, muitas empresas ainda não estão preparadas para lidar com essa população.
Diante de tantas portas fechadas e intolerância para aceitar a orientação sexual ou identidade de gênero das pessoas, empreender acaba sendo uma das poucas alternativas para a comunidade LGBTQIAPN+. "Durante o trabalho como corretora eu senti como se estivesse me omitindo como pessoa, até no jeito de vestir e falar. É como se fosse um personagem. Tinha pessoas boas lá, mas o lugar não era pra mim", conta Maria Eduarda.
Naquela época, ela tinha acabado de se formar em Biologia na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), mas decidiu apostar no empreendedorismo. "Eu costumo brincar que já nasci empreendedora, porque aos 15 anos de idade já vendia doces, chocolates e brigadeiros no colégio. Depois, durante a pandemia, passei a trabalhar com picolé-gourmet, mas depois ficou difícil conciliar com a faculdade. Além disso, eu sempre gostei de moda e queria fazer algo nessa área", diz.
PÚBLICO LGBT
Em 2022 surgiu a ideia de criar a Oompa Company, uma marca de moda Streetwear comprometida em representar a diversidade e identidade da cultura negra e LGBTQIAPN+. A Oompa tem uma pegada inovadora, criativa, inclusiva e colaborativa. Empresta às suas peças a moda de rua e a cultura underground do Recife. O carro-chefe são os óculos de sol, que trazem no seu conceito originalidade e autenticidade para atender às necessidades da comunidade LGBT, que representa até 90% do público da empresa.
Os modelos de óculos passam por uma curadoria e também por garimpo em bazar e brechós, resgatando peças com estilos de outras épocas. Os preços são acessíveis, variando de R$ 60 a R$ 85. A loja fica no bairro de Peixinhos, em Olinda, mas também são comercializados pelas redes sociais (@oompa.co), feiras, festivais e outros eventos. Outro diferencial do negócio é a parceria com artistas, por meio de editoriais de moda e composição de figurinos, por exemplo.
Atualmente Maria Eduarda toca o pequeno negócio junto com a esposa Rafaela Gusmão, fotógrafa e responsável por toda estratégia visual da marca. As empresárias explicam que o reposicionamento de marca foi uma estratégia de marketing acertada para melhorar a imagem da empresa e a percepção do cliente sobre ela. "O rebranding da Oompa, focando na nossa estética e audiovisual originais, foi responsável por influenciar a entrega e a visibilidade da nossa marca", reforça Maria Eduarda, de 24 anos.
Por enquanto ainda não é possível viver apenas da marca e a empresária conta com uma bolsa de mestrado em Biologia da UFPE para se manter. A pós-graduação, aliás, é uma tentativa de aliar sua profissão ao empreendedorismo, com perspectiva de agregar biomateriais às peças e tornar o produto mais sustentável. Com a Oompa Company, Maria Eduardo dribla as dificuldade do mercado de trabalho para as pessoas LGBTQIAPN+ e entrega à comunidade produtos com a sua identidade.
TRANSFORMA PRIDE
Uma ideia para impulsionar o empreendedorismo LGBTQIAPN+ que deu certo e vem crescendo ano a ano é a Transforma Pride. Idealizada por Henrique Guerra, a iniciativa começou há 3 anos como uma feira e, a partir deste ano, transformou-se em um festival. Como o organizador costuma dizer é tudo feito à base d e muita coragem e luta, buscando apoio para montar a infraestrutura, pagar os shows, montar os estandes e tudo o mais que o festival precisa para ser gratuito para quem participa e quem visita.
"A feira nasceu da necessidade pós-pandemia de oferecer oportunidade a tantas pessoas que estavam fora do mercado de trabalho e tinham no empreendedorismo a possibilidade de ter uma renda. Muitas empresas contratam apenas para preencher cotas e não se preocupam com o desenvolvimento profissional daquela pessoa. Outras eliminam os candidatos nas seleções quando percebem que fazem parte da comunidade LGBTQIAPN+, alegando que não se enquadram no perfil. Há também os casos em que se consegue o emprego, mas o ambiente é tão hostil que os profissionais desistem", destaca.
Comportamentos como esses, demonstram como o preconceito continua impregnado na cultura pernambucana. O idealizador da Transforma Pride conhece de perto essa realidade, porque sofreu o julgamento dentro da própria família. Ele relata que precisou passar 22 anos fora do Brasil, porque não queria viver sob a pressão de ser o que exigia a 'ditadura' da família conservadora: um heterossexual, casado e com filhos.
INCLUSÃO NOS PALCOS
O crescimento da Transforma Prime reforça o potencial de consumo e a capacidade empreendedora da comunidade LGBTQIAPN+. Ao longo desses 3 anos ele foi crescendo. Entre 2023 e 2024 o número de visitantes quase triplicou de 8 mil para 20 mil. Já o número de expositores passou de 60 para 110, com destaque para a quantidade de inscritos, que cresceu exponencialmente: foram 355 inscritos para disputar 110 estandes.
Guerra afirma que a ideia de transformar a feira em festival foi estimulada pelo desejo de dar visibilidade não só aos empreendedores, mas também aos artistas. "Existe uma dificuldade de inserir essas pessoas nos eventos do Recife. Temos exemplos de excelentes artistas, como Diva Menner (a primeira trans a participar do The Voice), que poderiam ter uma chance no Revéllion da Capital e em outros eventos, mas não são incluídos. Sabemos que a participação da comunidade é grande nessas festas, mas ela não se vê representada. Guerra adianta quer contribuir para impulsionar essas carreiras criando a Virada Transforma Pride, no último dia do ano.
MAIS ESPAÇOS
Nas discussões sobre inclusão da população LGBTQIAPN+, a vice-presidente da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA), Chopelly Santos, defende a adoção de políticas de garantia de direitos. "O presidente Lula teve muita coragem e deu o exemplo criando a Secretaria Nacional dos Direitos das Pessoas LGBTQIA+, comandada por uma mulher tran (Symmy Larrat). Defendemos que em Pernambuco seja criada uma secretaria executiva forte, com condições e recursos para implementar uma política que atenda as demandas da comunidade e combata, sobretudo, a violência. Pernambuco é o quarto estado que mais mata mulher trans no País", lamenta Choppely, ativista há 16 anos.
Depois da criação da Secretaria Nacional, o Governo Lula prepara a política nacional LGBT+ com foco em combate à violência e geração de renda. A previsão é que o documento seja lançado em 2025, com proposta de guiar programas federais, além de servir para exigir ações de estados e municípios.